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A concepção de saúde sob o prisma da religiosidade afro-brasileira

Por: Alexandre de Oxalá

Foto: Gui Christ

28/02/2023 | 16:31


O conceito de saúde passou por diversas modificações, tantas quanto foram os momentos sociais, históricos, políticos e culturais de um povo, haja vista a noção de saúde ser muito influenciada por valores e concepções acerca de fatos e da interferência externa divinal sobre um povo e suas desditas, assim como a própria concepção de o que era doença ou não. Em nossa cultura, à guisa de exemplo, é sabida a íntima relação feita por nossos ancestrais entre Omolu e a doença chamada varíola, chegando esta a ser reconhecida em depoimentos antigos como a manifestação daquele, como exploraremos adiante. Antes de entrar na temática propriamente dita deste artigo, expor-se-á o conceito vigente de saúde de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), trabalhado em solo nacional sob os princípios que norteiam o Sistema Único de Saúde (SUS).



Em 1946, a OMS deixou de lado a noção de saúde como simples ausência de doença e passou a defini-la como um estado de completo bem-estar físico, mental e social. Tal definição pode até ser considerada abrangente e libertária, levando-se em consideração a época na qual foi concebida ( o imediato pós-Segunda Guerra Mundial e o início da concepção de Estado de Bem-Estar Social), entretanto os imperativos de nossa época e as peculiaridades de nosso povo a tornam utópica e irrealista (como uma nação desestruturada economicamente provê perfeito bem-estar social?), além de separar a noção de saúde corporal e mental, o que vem sendo superado pela moderna noção de intersetorialidade (vários fatores externos ao individuo sendo reconhecidos como determinantes de saúde, tais como educação, renda, moradia, alimentação etc), agregando fatores determinantes e condicionantes que, em interação perene com o indivíduo, resultam em “um estado de saúde”; é usada nesta expressão a palavra “estado” justamente para salientar que essa situação é mutável o tempo todo. Os princípios ( um conjunto de normas ou padrões de conduta a serem seguidos por uma pessoa ou instituição) do nosso SUS, notadamente a equidade (diminuir desigualdades), a integralidade do cuidado (ações voltadas para prevenção e promoção de saúde) e a universalização (acesso a todos) ainda alertam para a necessidade de reconhecimento sobretudo de vulnerabilidades individuais e sociais, valorizando o contexto familiar e da comunidade que cerca o indivíduo-usuário do sistema de saúde.


Entre boa parte dos povos africanos, notadamente os Yoruba, a noção de saúde é imanente a um estado de equilíbrio entre fatores internos (do indíviduo) e externos (pragas, maldições, ira de divindades, infortúnios climáticos etc) ; diz-se que a doença está instaurada quando esse equilíbrio se rompe, trazendo toda sorte de moléstias. É mister que, no corpus literário de Ifá, a própria doença é Àrún , um gênio negativo sobrenatural- um Ajogún -tendo ela mesma um caráter mítico-punitivo, agindo quando os humanos se vulnerabilizam à sua ação nefasta, seja por falha de caráter, integridade ou até mesmo por castigo divino, adquirindo ela mesma um aspecto místico por si só. Os curandeiros e adivinhos das tribos, notadamente os Babalawo, eram solicitados para consulta aos deuses sobre como driblar ou anular a ação de Àrún sobre uma pessoa ou sobre uma coletividade, adquirindo esse cuidado uma autêntica função social, o que é notável, levando em consideração que só o povo Yoruba tem mais de dois mil anos de existência documentada, interessante notar que mesmo em uma sociedade “primitiva” a saúde já era vista como fenômeno coletivo, o que foi trabalhado em sociedades ocidentalizadas só depois dos anos cinquenta – possível consequência do desprezo aos saberes ancestrais incutido pelas sucessivas colonizações, o que acontece também com saberes de cultura oriental que hoje são amplamente divulgados e difundidos, como a Medicina Tradicional Chinesa, o que nos leva à indagação: quanto saber não perdemos, que talvez faria a diferença frente aos desafios impostos por novas doenças?


Para o eficaz combate à doença, os sacerdotes/curandeiros dispunham de vários itens, como cascas, sementes, frutos, ervas, águas e também, com a mesma importância, a prescrição de oferendas – ebo – com diferentes tipos de sacrifícios, fazendo uma simbiose entre religião e ciência, tornando-as, até certo ponto, indissociáveis, o que ratifica o caráter transcendental da doença e a necessidade da religião para restabelecimento do equilíbrio no corpo daquele(a) suplicante. Interessante ainda notar que, para esta cultura, o ponto principal de equilíbrio no corpo humano reside em Òrí , a cabeça (também reconhecida como divindade imanente ao ser vivente_ ponto central da ação de todos os infortúnios e, por conseguinte, o principal receptor de cuidados nesta tradição. Aqui podemos entender o porquê de, em centenas de mesas de jogo de búzios Brasil afora, é muitas vezes recomendado o Bori, a “comida à cabeça”, para diversos problemas de saúde, tendo esta oferenda caráter renovador e transmutador de energias, pela própria natureza da divindade Òrí, que responde de forma dinâmica aos estímulos externos. Aqui há a relação íntima do fenômeno religioso como promotor de saúde, o que só em meados dos anos 2000 a Medicina começou a pesquisar: a influencia da espiritualidade sobre a saúde, bem como reconhecendo práticas integrativas em saúde que são técnicas milenares, tais como Reiki, Yoga, Quirppraxia, Cromoterapia e tantas outras que atualmente compõem as PICS- Práticas Integrativas e Complementares no SUS.


Esta relação de cabeça e equilíbrio com saúde foi trabalhada também por outra civilização, a romana, indo ao encontro dessa concepção as palavras do célebre filósofo Juvenal, no século X d.C.: mens sana in corpore sano, mente sã em corpo são, reconhecendo a imprescindibilidade do equilíbrio de um para haver harmonia sobre o outro, resultando em um ser humano harmonizado com seu interior e exterior, produtivo e feliz. Exaltamos esse princípio em muitos de nossos rituais sacrificiais, quando oferecemos a cabeça do animal imolado como primícia da Divindade – é uma forma de pedir e exaltar a importância da cabeça no nosso estado de harmonia.


Faz-se mais urgente do que nunca que o “Povo de Santo” se una, estude, debata, reflita e aja como promotor e agente de conhecimento, para que resgatemos mais e mais a sabedoria africana para oferecermos à coletividade e por que não à comunidade científica para validação?


À guisa de desafio final: afinal, o que representa saúde para você?

Que seja um 2023 de muita SAÚDE, física, mental e espiritual para todos nós!




Átila Nunes - AxéNews

Babalorixá Alexandre de Oxalá

Alexandre de Oxalá é iniciado no candomblé desde 2009 pela Doné Cristiane de Oxum, neto do saudoso Doté Luís de Oya do Axé Omo Inã, de nação nagô-vodun em Anchieta, RJ; iniciado no Culto a Ọ̀runmila em 2012 pelo Babalawo Ifanimorá, Prof Fernandez Portugal Filho e sacerdote do Xwe Fa Sèn, em Nova Iguaçu (RJ).

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