Por: Pai Sid
13/06/2023 | 07:36
Nossa forma de aprender, ensinar desde sempre nos terreiros é através da fala, da conversa, da zuela. Estar em uma comunidade onde a diversidade de pessoas e formas de ser e ver a vida é tão presente nos obriga ao exercício do cuidado com o outro e com o que e como falamos.
A palavra está presente em tudo que fazemos para e no sagrado, ela é a nossa alma e coração projetados em direção ao mundo e ao que nos cerca. Cuidar do que se fala é fundamental para a construção sólida das boas relações, para o exercício da cura, da boa magia e das boas trocas, mais ainda para a preservação da própria ciência e memória da comunidade.
Se tudo em uma comunidade passa pela palavra, pelo contato com o outro e pelo afeto ao outro, como chegar no terreiro sem ter o cuidado de falar com ou saudar a todos? A troca de bençãos demonstra humildade e respeito pelo outro e pela ancestralidade que cada camutuê carrega, e por isso é impossível falar em pedido de bençãos, se ainda é preciso lembrar aquele que chega ao terreiro ou que está saindo dele em dar um bom dia ou boa noite, se este não se importa em dizer um ‘olá’ aos irmãos, projetando o bem através da fala…
Essa palavra não dita, ou o descaso em usá-la no primeiro contato com o outro é como um bem não usado, uma água feita para saciar a sede da boa convivência e que estagnada, adoece aquele que deveria ser o transmissor da boa fala. Essa boa fala e convivência em um espaço de terreiro deve estar acima das afinidades baseadas no ego e no que criamos com esses ou aqueles, pois estando ali, tudo o que deve ser feito e vivido em terreiro diz respeito ao nós, a comunidade.
Os membros de uma comunidade, independente da idade, já chegam em um espaço com sua construção social pré-estabelecida, com sua ‘educação’ usada no cotidiano baseada nas relações que possui e se permite construir. Por vezes essa forma de ser e se relacionar no mundo não contempla por diversas questões, a convivência coletiva e ao chegar num terreiro precisam reconfigurar sua forma de lidar com o outro e até mesmo consigo.
São muitas as dores que cada universo humano traz e que por vezes são impossíveis de se expressar com palavras e também por isso acabam por refletir em nossa forma de lidar com o outro, mas também carregamos desvios e potencialidades que podem de alguma forma contribuir positivamente ou não na construção de uma boa convivência e no autoconhecimento. Se temos dificuldade de falar de nós e do que portamos, corremos o risco de usar a fala para jogar no outro aquilo que teimamos em não enxergar em nosso íntimo.
As relações humanas em qualquer lugar antes de se basearem em afetos, passam pelo respeito que deve sempre nortear qualquer convívio. Entender que num ambiente plural e coletivo haverá afinidades e conflitos é natural, mas o discernimento que medeia as divergências deve estar presente também para lembrar da importância de cessá-las quando estas extrapolam os limites que podem de alguma forma impactar negativamente no bem comum.
Quando percebemos a importância da palavra, enxergamos nela sua força transformadora e realizadora seja nas saudações, nas cantigas, ou na presença do ancestral naquilo que pensamos e falamos. Deixamos de ser eu para ser um todo, reforçando os saberes confiados por quem veio antes, dando voz e eco aquelas palavras e frases dos antigos que funcionam como verdadeiros encantamentos de cura e autoestima para nós mesmos e para os que nos cercam ao sair de nossas bocas.
É preciso fazer uso do ‘correr a gira’ e avaliar o que outro carrega, o que eu trago na minha emoção e como a minha palavra mesmo não proferida atinge o outro. Correndo a minha própria gira eu faço uso do silêncio apaziguador e sensato me preservando da agressividade do outro e da minha própria.
Tão ruim quanto o não uso da palavra quando evito contato com os que me cercam é o mau uso dela num lugar em que o exercício da comunicação deve construir o alicerce da fé nos que por vezes nos chegam carecendo de zelo e atenção. Combater a jindaka (fofoca) é estar em vigilância constante para evitar a presença em nós do que contribui para ruir o que foi erguido pelos mais velhos e que pode pavimentar o caminho dos que virão.
Umbamba (sabedoria) é a palavra que deve ser pensada e usada sempre de forma contundente e firme para podar a muda daninha da maledicência e que com bom senso e ponderação deve aconselhar e orientar com base numa fala construtiva e agregadora que invés de alimentar rancores, aponte propósitos e fortalezas em benefício do coletivo.
Quando estamos na gira, os cantos partem daquele que puxa a cantiga usando a palavra pergunta: ‘se meu pai é rei’ a resposta é sempre coletiva e para todos: ‘príncipe ele é’. O verbo é sempre em benefício comum, agregador e curativo movimentando nos camutuês através do exercício da fala e da escuta mútua a palavra que alimenta, é essa interação comunidade/ancestralidade que nos educa para uma socialização sadia e respeitosa.
Num mundo globalizado onde as interações são rápidas com muitas informações, estamos cada vez mais distantes da vida social que nos foi confiada e que deve servir de algum modo para a manutenção de nossa saúde emocional, é este distanciamento que tem como resultado tantos filhos de pemba com dificuldades em se relacionar, em conviver, em viver. O que é contrário a tudo que se faz e vive em terreiro, seja do pedido de benção ao abraço cruzado dado pelos nossos encantados que fazem os corações afinar o compasso enquanto a palavra é cantada pelo ogã.
Esse presente de Zambi, nunca se fez tão necessário, mas é importante que passemos a usar a palavra como agente vivo de cura e magia, reflexo da força, sabedoria e memória de nossos bakulus vibrando em nossos corações e preenchendo espaços de dor.
Quando a língua vira faca, ela corta os lábios!
Pai Sid
Pai Sid Soares é pai pequeno do CENSG - Centro Espírita Nossa Senhora da Guia em Volta Redonda RJ. Co-presidente da Comissão de Terreiros Mojuba, no Sul Fluminense que realiza um trabalho de fomento das políticas públicas para o povo de santo. [+ informações de Pai Sid]
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