Por: Ademir Barbosa Junior
✅ 12/12/2024 | 18:05
Amar você tem efeitos colaterais, como a vontade de almoçar em restaurantes vazios para contribuir com a féria do dia. Ou me hospedar em hoteis insalubres, no centro da cidade, onde se dorme mal pelo barulhos nos quartos alugados por estudantes que vêm aos congressos (as garotas de programa e os clientes são silenciosos: as primeiras de modo profissional; os segundos, por receio de desacato à gerência). Eu sempre tive essa tendência: adolescente, nos bailes, tirava pra dançar as meninas magras ou albinas, que sempre ficavam de canto (uma delas era magra e albina, só tinha uma saia e os meninos diziam que tinha os olhos roxos), mas amar você me torna mais compassivo, enxergo o mundo com os outros olhos (talvez roxos, como os da menina magra e albina, que sorria manso como coelho novo ou cão idoso quando íamos para a pista de dança).
Você muda de emprego sempre que faz aniversário e também corta o cabelo pouco antes ou depois. Sempre outra, sendo a mesma. Lida bem com a fibromialgia, os gatos, o bruxismo: o que pega mesmo é o final do mês, o dinheiro mais escasso. Deu certo a rádio: a primeira emissora dava mais trabalho do que certo; a outra, agora, deixa você mais à vontade. O estado todo conhece sua voz, bem como a parte do mundo que acessa a rádio pela internet. Mas a fibromialgia e o bruxismo, eu, os médicos, algumas amigas e sua mãe (sua mãe, que também conhece os gatos e suas datas de adoção). Você é bem discreta, gosta mais de banheiras do que de praias, a não ser as desertas, aquelas que os turistas nem conhecem.
De seu pai sei apenas o que sua mãe conta. Um homem que se escondia do mundo. Que falava como quem benzia, sem que ninguém entendesse. Que quando levava você a passeio, pequenininha, apertava campainhas das casas dos parentes, pegava você pelos ombros, botava na frente do portão e se afastava pro lado. Que um dia pegou carona pra Minas ou São Paulo, mas ninguém sabe se chegou. Que a última vez que você viu seu pai, ia subir num ônibus e caiu de bunda no meio do terminal, ele estava descendo e disse “Minha filha, é você?”. Se faço pergunta, sua mãe desvia o assunto e começa a falar da mãe dela. Que cortou cana boa parte da vida e se alfabetizou depois dos 60, começou a escrever poemas, que um amigo dos netos dela (seus primos) revisava e hoje ela é nome de cadeira na academia municipal de letras da capital. Emenda contando de infância difícil que você teve, sem leite, com chá mate leão; sem televisão e geladeira, com a vizinha da casa 7 dando cubos de gelo num prato fundo e a da casa 10 meio copo americano de café ralo que sua mãe bebia com vontade. Nesse tempo sua avó ainda não escrevia poemas, não tinha telefone e sua mãe não queria dar mais trabalho a ela, dobrava o turno no hospital, seu pai bebia bastante, falava ainda mais enrolado e baixo, o queixo quase encostando no umbigo.
O pão com ovo. Você chama de pão com ovo. Duas fatias de pão, um ovo frito, presunto, muçarela, queijo, orégano, alface, às vezes cebola. Mostarda ou pimentinha que você põe vez ou outra. Com tudo isso, mas você chama de pão com ovo e sempre me pergunta se vou fazer ou não. Há dias em que você come quando chega da rádio, caminhando rápido do ponto de ônibus até aqui. Outras vezes come depois de fazermos amor, ambos suados, antes de qualquer banho, o pão com ovo sendo preparado com cuidado, eu concentrado enquanto você fala da rádio, de livros, de pessoas que estão para ser despejadas de imóveis e precisam de roupas, comida, advogado voluntário (a Defensoria Pública tem fila imensa e não atende todos os dias), prótese, cadeira de rodas, pão com ovo feito com amor.
Azeitonas. Viciei porque você gosta e um dia fiz aquela torta e escrevi seu nome em cima com azeitonas verdes e sem caroço. Comecei a comprar e comer às vezes um saquinho pequeno, mas a pressão passou a subir, por sódio, sal ou conservante. Aí a azeitona me quizilou e comecei a lavar antes de usar em algum prato, mas não compro mais escondido para comer de lanche. Você riu muito quando eu contei da pressão, franzindo o nariz, sentada em meu colo, relaxada, usando aquela minha camiseta cinza, grande (gosto de roupas largas), parecendo em você vestido ou camisola. Momento lindo, colorido, que também ficaria mágico numa foto preto e branco, tirada com a luz a nosso favor.
Você tem medo de pontes, mas não de entrar em rio; medo de altura, mas não de voar de avião. Medo de não saber usar talheres em ocasiões formais, mas não tem vergonha de comer com as mãos. Engenhosa, quando nos conhecemos e eu comentei o bairro onde morava, disse que ia fazer um metrozinho para nos vermos: embarquei nessa ideia e, desde então, tenho mergulhado e voado com você.
Ademir Barbosa Junior
Ademir Barbosa Júnior (Pai Dermes de Xangô) é dirigente da Tenda de Umbanda Caboclo Jiboia e Zé Pelintra das Almas (Piracicaba – SP), fundada em 23/4/2015. É Doutorando em Comunicação pela UNIP (Bolsa PROSUP/CAPES) e Mestre em Literatura Brasileira pela USP, onde se graduou em Letras. Pós-graduado em Ciências da Religião pelo Instituto Prominas, é professor e terapeuta holístico. [+ informações de Ademir Barbosa Junior]
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|| Artigo de Opinião: texto em que o(a) autor(a) apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretações de fatos, dados e vivências. ** Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do AxéNews.
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