Artigo escrito por Ana Paula Miranda e sua aluna Andreia Soares Pinto
21/01/2025 | 19:00
Um novo relatório foi lançado com o objetivo de sistematizar dados sobre violações enfrentadas pelos Povos de Terreiro no Brasil. O estudo foi realizado por pesquisadores do Ginga UFF, e a metodologia da pesquisa se baseou em buscas na internet, a partir de palavras-chave, em mídias sociais, veículos de comunicação e plataformas digitais. O objetivo foi mapear as múltiplas formas de violações, bem como suas formas de mobilizações, entre os anos de 1996 e 2023, em publicações digitais de todo o país.
As publicações compiladas e analisadas apresentam um panorama diversificado que evidencia a frequência e a gravidade das violações contra as religiões de matriz africana, incluindo episódios de violência física, moral e simbólica, além de ataques direcionados a espaços sagrados, como terreiros e monumentos em espaços públicos. Os dados revelam como essas práticas perpetuam discriminações históricas.
O conceito de “conflitos de natureza étnico-racial-religiosa” é utilizado para representar violações sofridas por religiosos de matriz africana, referindo-se a situações sociais que envolvem tensões que emergem da intersecção entre identidades étnicas, raciais e religiosas.
Trata-se de uma escolha teórico-metodológica para representar diferentes universos culturais, que nomeiam de muitas maneiras as agressões sofridas pelos religiosos de matriz africana. Esses conflitos refletem relações de poder, nas quais as religiões de matriz africana são colocadas em posição de inferiorização, por conta de sua histórica perseguição e demonização protagonizada pelo Estado e pelas Igrejas cristãs, que se manifestam em diversas formas de intolerância, discriminações e violações. Esses conflitos não devem ser considerados como expressões de desavenças individuais, mas sim em relação aos processos sociais e políticos, que perpetuam desigualdades e exclusões.
Optamos também por falar em violação porque se considerou que o termo dá conta de todas as formas de transgressões ou descumprimento de direitos, que também incluem as ações violentas, sob a forma de dano físico, psicológico, moral ou social, que geralmente envolvem força, coerção e abuso de poder.
Dentre as publicações sobre violações contra os povos de terreiro, destacam-se invasões e depredações de locais sagrados (24,8%) e ofensas e agressões verbais (14,9%). Situações conflituosas entre a comunidade do terreiro e a vizinhança foram observadas em 11,7% das violações, assim como a ação de criminosos armados foi igualmente significativa (11,4%). O Rio de Janeiro é um dos estados com mais publicações identificadas, o que se explica pela presença de grupos armados em determinadas regiões, cuja atuação tem impactado diretamente na segurança e na liberdade dos terreiros, incluindo o impedimento da prática religiosa. Salienta-se ainda que as mulheres são o alvo frequente dessas violências, incluindo ataques que combinam misoginia e racismo e que os ataques a terreiros incluem vandalismo, depredação e ações que buscam deslegitimar a importância cultural e espiritual desses espaços.
Quarenta mortes violentas de religiosos de matriz africana foram divulgadas, onde 75% delas eram de lideranças religiosas (sacerdotes e sacerdotisas). O relatório registra episódios de assassinatos motivados por ódio religioso, revelando a gravidade dos ataques enfrentados pelas comunidades.
O estudo aponta um aumento de visibilidade para os casos de agressões físicas, ameaças e práticas de exclusão social contra lideranças religiosas. Essas violações são também responsáveis por adoecimentos de religiosos e religiosas, que em muitos casos podem até levar à morte. Como foi o caso de Gildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda, fundadora do terreiro de candomblé Ilê Asé Abassá, na Bahia, que adoeceu por causa das agressões que sofreu, e cuja morte é lembrada no 21 de janeiro, desde 2007, quando foi criado o Dia Nacional do Combate à Intolerância Religiosa.
Foram identificados 29 publicações sobre eventos de conflitos étnico-racial-religiosos em ambientes escolares, sendo os estudantes os mais citados como alvos das violações, evidenciando que as instituições de ensino enfrentam um desafio persistente de enfrentamento ao racismo, que impacta diretamente em crianças e jovens oriundos das tradições de matriz africana. Ter identificação religiosa de matriz africana nesses casos resultaram em ofensas e agressões verbais, injúrias por discriminação, agressões físicas e proibição de acesso à escola. Outras situações de destaque foram dificuldades na aplicação da lei 10.639/2003.
Em publicações de anos mais recentes é frequente observar destaques sobre as movimentações sociais e institucionais que foram instigadas pelas situações de conflito apresentadas ou matérias específicas sobre reivindicações e ações coletivas dos povos de terreiro.
A resistência dos Povos de Terreiro é uma força vital na luta contra as violações, com mobilizações que incluem atos públicos, atividades culturais, campanhas educativas e a busca por direitos nas esferas legais, em especial, nas delegacias e no judiciário.
As publicações que tratam de respostas do poder público, ainda que limitadas, incluem ações punitivas, audiências públicas e campanhas de conscientização, visando combater o racismo e promover campanhas de valorização da diversidade religiosa, sinalizam para alguns avanços e muitos desafios e lacunas nas políticas públicas voltadas à proteção das religiões de matriz africana.
Este trabalho é uma contribuição indispensável para o entendimento do cenário atual e o fortalecimento das lutas em defesa dos Povos de Terreiro, convocando a sociedade a refletir e agir em prol do respeito e da diversidade religiosa no Brasil.
Ele representa um resumo de um banco de dados, que será atualizado periodicamente, para construir uma memória não da dor e da violência, mas de como as violações contra terreiros fazem do luto uma luta constante. A alegada invisibilidade dos casos de racismo religioso não poderá mais ser utilizada, já que estamos diante de um acervo digital nacional inédito, que será aberto a contribuição da população, de forma interativa.
Ana Paula Mendes de Miranda
Doutora em Antropologia (USP); Professora da Universidade Federal Fluminense; Coordenadora do Ginga; Pesquisadora do INCT Ineac.
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