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Babá Márcio de Jagun fala sobre o Dia Nacional das Tradições de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé

"Esta lei significa para nós não só um reconhecimento, como se fosse necessário, mas um marco territorial, uma reterritorialização"



21/03/2024 | 10:22


Sancionado pelo presidente Lula (PT) em 2023, 21 de março é o Dia Nacional das Tradições de Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé. Mesmo com o reconhecimento da data, a realidade brasileira ainda é marcada pela intolerância religiosa, que tem como consequência a discriminação e uma série de outras violências contra povos de religiões de matriz africana.




Em entrevista ao AxéNews, o coordenador da Coordenadoria de Diversidade Religiosa da Prefeitura do Rio, babalorixá Márcio de Jagun, falou sobre a importância da data, e ressaltou a necessidade de um maior empenho do Estado e da sociedade no combate a intolerância religiosa e suas consequências.



Confira abaixo a entrevista!


AxéNews: O presidente da República sancionou a lei 14.519 que define o dia 21 de março como Dia Nacional das Tradições das Raízes das Matrizes Africanas e do Candomblé. O que esta data representa para os povos de matrizes africanas?


Babalorixá Márcio de Jagun: As datas comemorativas, as datas celebrativas são muito importantes, sobretudo em um país como nosso que ainda é repleto de muitas desigualdades, onde grupos vulnerabilizados continuam a lutar para sobreviver, continuam tentando romper as barreiras da invisibilidade e da opressão que marcam o nosso território desde a colonização desse chão. Portanto, esta lei significa para nós não só um reconhecimento, como se fosse necessário, mas um marco territorial, uma reterritorialização de forma que estas partes da nossa cultura seja não só vista e entendida, mas colocada em pé de igualdade de outras datas e celebrações de outros segmentos culturais que também compõem o nosso Brasil



AxéNews: Não à toa, a data escolhida pelo Congresso para a comemoração coincide com o marco do Massacre de Sharpeville, escolhido pela Organização das Nações Unidas para a conscientização contra a discriminação racial. Como o senhor avalia os desafios que hoje são vivenciados pelas comunidades tradicionais de terreiros em nosso país?


Babalorixá Márcio de Jagun: A racialidade é uma questão transversal à discussão da liberdade religiosa no nosso país, é indissociável essa relação. Precisamos, sem dúvida nenhuma, observar que os terreiros de candomblé, de umbanda, enfim, das religiões das matrizes africanas são polos, não apenas religiosos, como se fosse pouco, mas de cultura, de sociabilidade e de resistência. As perseguições aos terreiros de candomblé nunca deixaram de acontecer. Embora, atualmente a legislação, os marcos regulatórios estabeleçam garantias e direitos, ainda assim nós observamos que o preconceito, que as violências continuam alcançando essa parcela de nossa sociedade tão significativa. Portanto, os nossos desafios hoje são fazer com que a sociedade entenda as leis, com que o próprio aparato público cumpra as leis sem o preconceito estrutural, seja de origem racial, seja o preconceito estrutural no que diz respeito à intolerância religiosa. Portanto, os marcos regulatórios, como disse, são bastante razoáveis, suficientes para as garantias desejáveis. Mas, romper a barreira da invisibilidade e pedagogicamente ensinar à sociedade o que é diversidade ou a diversidade que a compõem são hoje, talvez, os maiores exercícios para que a gente alcance um novo patamar desejável, esperado que não pode ser perdido no nosso horizonte, que é a reparação.



AxéNews: A cultura brasileira tem muito das religiões de matrizes africanas. Entretanto, o Brasil registra diversos casos de intolerância religiosa por dia a esses religiões. Na opinião do senhor, por que ainda sofremos tantos preconceitos?


Babalorixá Márcio de Jagun: Eu penso que nós sofremos preconceitos religiosos muito em função ainda dos marcos da colonização. Esses fantasmas não nos abandonaram. Observe, desde que o colonizador adentra esse território, ele finca duas estacas, que são alicerces para os seus objetivos. Um alicerce é a questão da racialidade. É o colonizador que traz a ideia de raças superiores, supostamente inferiores. A racialidade sustenta com um dos pilares o projeto da colonização. E o outro pilar é a ideia da hegemonia religiosa, da verdade única e absoluta, da única salvação. E observe, essas questões continuam assombrando o nosso cotidiano. Embora o Brasil não seja mais uma colônia portuguesa, embora não sejamos mais um império, nós ainda vivemos com essas estacas, com esses alicerces na nossa sociedade. Portanto, para que a gente consiga desestruturar essas estruturas da racialidade e da intolerância, precisamos puxar o fio da meada, e reconstruir os conceitos importantes a partir da nossa identidade diversa, múltipla e plural.



AxéNews: Paralelo a essa iniciativa, tivemos a implementação da Lei 14.532, de 2023, que tipifica como crime de racismo a injúria racial. Diante disso, quais outras ações ou mudanças podem ajudar a combater a intolerância religiosa?


Babalorixá Márcio de Jagun: A lei 14.532 que tipifica como crime o racismo e injúria racial, é pedagógica, muito importante e um marco para a nossa sociedade. Ela delimita e acentua que de fato a intolerância religiosa tem um viés racial. Mas, a intolerância religiosa também tem tantas outras facetas. Em um país multifacetado como o Brasil não dá para comparar e equiparar todos os tipos de intolerância religiosa como se fossem uma coisa só. Há várias camadas de preconceitos que vão se acumulando sobre as vítimas. O preconceito que acontece com uma mulher islâmica é diferente do que acontece com um homem islâmico. O preconceito que acontece com uma mulher negra, periférica e homossexual do candomblé é diferente do que acontece com um homem do candomblé de pele branca, heterossexual e cis. Então, essas camadas dificultam, inclusive, da gente estabelecer uma única nomenclatura. Eu, por exemplo, costumo propor que ao tratarmos desse assunto utilizemos a expressão ''intolerância etnico religiosa' por que chamar tudo de racismo religioso é perigoso. Eu mesmo tenho a pele branca, e não me sinto à vontade de dizer que sofro racismo religioso ainda que tenha uma conotação pela minha fé, eu não posso dizer isso no Brasil, não é cabível dizer isso numa nação tão racializada quanto a nossa. Então, não podemos deixar de demarcar a questão étnica, mas também precisamos entender que essas subjetividades precisam ainda ser estudadas e reparadas dentro das suas especificidades. Eu entendo que essa lei traz para nós uma visibilidade importante para essa questão racial, que muitas vezes passa despercebida aos olhos de muitos agentes do preconceito, do racismo e da intolerância religiosa.








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