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Banalização do culto de matriz africana - onde erramos?

Por: Alexandre de Oxalá

22/07/2023 | 11:21


Atualmente, entre os adeptos de culto de matriz africana, muito se fala em banalização do sagrado, em exposição desnecessária de atos inerentes à intimidade das casas de culto em redes sociais, na mudança de atos litúrgicos e, até mesmo, uma crescente expressão de saudosismo, inclusive entre recém-iniciados, de tempos passados, sendo invulgar o uso da expressão “na minha época...”. Neste mesmo diapasão, grande é o número de queixas ao proceder de sacerdotes e sacerdotisas, aos valores (financeiros, inclusive) e posturas cobrados dos adeptos e das eventuais concessões que estes dirigentes façam eventualmente, parecendo aos olhos de pessoas profanas que acompanhem eventualmente publicações sobre estas religiões, que as mesmas perfazem um ambiente insalubre e problemático.



Estas e outras muitas queixas correntes entre o “povo-de-santo”, notadamente após o advento da rede mundial de computadores e da própria mudança de mentalidade das pessoas inerente ao inexorável ciclo de gerações da vida, que leva a um choque ideológico em relação aos mais experientes; novas cabeças têm naturalmente novos anseios e questionamentos aos quais nossos mais velhos muitas vezes não estão habituados ou não raramente foram silenciados por sua vez pelos seus mais velhos, por razões que fogem ao escopo deste texto, confundindo os conceitos hierárquicos e disciplinares inerentes a qualquer religião iniciática, o que mostra a dificuldade que muitos líderes religiosos têm de lidar com um perfil cada vez mais diverso de religiosos, com expectativas e ideias muitas vezes dissonantes da tradição, por pura falta de esclarecimento aos mesmos muitas vezes.


Ocuparemo-nos aqui dos fatores que impedem nossa matriz religiosa de crescer sem tantos conflitos e consequentes decepções e baixas de um número significativo de adeptos que, muitas vezes, engrossam as fileiras das religiões neo-pentecostais, levando para esses lugares nossos preceitos e fundamentos, fornecendo a estas munição para ataque a nós mesmos. Há um capítulo de livro do eminente professor José Beniste (Mitos Yorubás - O Outro Lado do Conhecimento – Bertrand, 2020), renomado autor de obras vinculadas à temática afrorreligiosa, que trata desta temática com precisão cirúrgica; vale a pena a leitura da referida obra na íntegra.


Primeiramente, seria extremamente importante que nossos órgãos fiscalizadores (de fato) revisassem o número de terreiros afiliados bem como fizessem busca ativa de casas que funcionam sem qualquer alvará, encorajando as mesmas a tomarem parte no que poderia ser um grande censo, que serviria para orientar os próprios adeptos, quando os mesmos desejassem ter acesso a um templo de sua raiz, o que evitaria muitas vezes o que se chama de “troca de águas”, colaborando para que a raiz de iniciação do adepto fosse mantida ou até mesmo, em caso de acidentes ou outros infortúnios, as outras comunidades tomem conhecimento, com a possibilidade de formação de uma rede de ajuda, fortalecendo os laços entre dirigentes e casas, solidificando a religião como instituição político-social e, como se fala muito atualmente, em “religião de resistência”.


Como, no caso do Candomblé em particular, houve a divisão de seus ritos e características em grupos denominados comumente de “nações”, urge reunir representantes destes segmentos, notadamente os mais antigos e de notório saber, para que se discuta, entre esses sacerdotes, que vivem a religião na prática diuturnamente, os atuais problemas enfrentados pelos religiosos, notadamente a intolerância religiosa e propor soluções ou meios de contornar os mesmos, o que pode gerar inclusive plano de políticas públicas futuras para todos nós. Importante lembrar que outras religiões usaram e usam deste mister, haja vista os Concílios, inerentes à religião Católica, que norteiam as práticas da Igreja em âmbito global. Nossas Federações têm que sair de seus escritórios e ir às casas, às comunidades-terreiro, sentir junto com os adeptos a realidade local de diversas áreas e , dessa forma, engendrar planos de ação para que nos fortaleçamos.


Seria também extremamente interessante um controle mais apurado para os candidatos ao sacerdócio por parte dos dirigentes, inclusive no que tange ao tempo de iniciação e domínio da prática oracular, a pedra angular de uma casa de Axé; é de conhecimento da maioria que muitos novos aspirantes ao ofício sagrado imprimem à sua prática traços pessoais que destoam das suas casas de origem, muitas vezes misturando saberes e deturpando o conhecimento ancestral, descredibilizando o culto e colocando pessoas idôneas em risco. É de suma importância que, uma vez identificados os filhos e filhas que têm o caminho do sacerdócio, os dirigentes os submetam a comprovação de conhecimento, sabatinas, se coloquem à disposição para ajudá-los nas primeiras funções na casa recém-fundada e supervisionem, inclusive com o uso do oráculo, para que as Divindades de fato chancelem o novo templo. Evidente que, para que isto ocorra em harmonia, as autoridades e o sacerdote não devem se negar a prestar informações e disseminar o conhecimento, fortalecendo a confiança e solidificando os laços entre sacerdotes e membros da comunidade religiosa, ensinando a todos que o protagonista de uma casa de Axé é a Divindade e não o sacerdote; este é o mediador, o catalisador do fenômeno espiritual naquela comunidade, sendo merecedor de todo respeito mas tendo reconhecida sua natureza humana como a de todos nós, sujeita a falhas e discordâncias.


Deve ser trabalhada, na mente de todos os adeptos “do Santo”, que a divindade não pertence ao adepto e sim o contrário; não raro vemos posturas escatológicas de algumas pessoas que dizem professar nossa fé usando o nome dos Deuses para proferir ameaças, extorsões e até mesmo verdadeiros crimes; quem nunca ouviu expressões como: “o meu Oxosse faz assim”, “a minha Oya é assado”, “a minha santa só usa isso ou aquilo”... talvez as lendas que embasam nossos costumes, retratando as divindades com essa ou aquela natureza, aproxime tanto o adepto que este passa a se confundir psiquicamente com os atributos do orixá/vodun/nkisi, justificando atitudes e reflexos ( na maioria das vezes nefastos), chegando ao ponto da banalização, da dessacralização daquele ente, tudo isso por falta de estudo adequado e compreensão do fenômeno religioso. Nossas casas têm de reservar períodos em sua agenda para instruções, aulas, trocas de experiência e disseminação do saber. Muitas pessoas, até algumas com vasto tempo de iniciação, podem ser vistas em cerimônias fazendo poses para fotografias e muitas vezes puxando a divindade manifestada sem qualquer pudor, isso não entrando no mérito da postura ao adentrar um lugar sagrado, com vestimentas, linguagem e vocabulário inapropriados, afastando-se o indivíduo da essência do divino, isso quando este não se converte em uma mera moeda de troca para os anseios materiais, sem que se trabalhe no íntimo das pessoas a fé em algo superior.


Cabe ainda muito o que falar, pensar, repensar e, sobretudo, executar para que nossa religião saia de fato da estrutura escravagista-colonial e cresça perante a cultura, a política e a sociedade, tendo este texto uma continuação futura.


Abraços fraternos!



Átila Nunes - AxéNews

Babalorixá Alexandre de Oxalá

Alexandre de Oxalá é iniciado no candomblé desde 2009 pela Doné Cristiane de Oxum, neto do saudoso Doté Luís de Oya do Axé Omo Inã, de nação nagô-vodun em Anchieta, RJ; iniciado no Culto a Ọ̀runmila em 2012 pelo Babalawo Ifanimorá, Prof Fernandez Portugal Filho e sacerdote do Xwe Fa Sèn, em Nova Iguaçu (RJ).

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