Por: Ademir Barbosa Junior
02/06/2023 | 07:30
A Espiritualidade é livre, sem amarras e fronteiras, portanto, muito além de convenções e preconceitos. Manifesta-se em dado contexto cultural e social, com vistas a auxiliar o ser humano a viver de forma plena, embora nem sempre seja compreendida, uma vez que se tenta moldá-la (e mesmo aprisioná-la) ao status quo. Nesse sentido, uma Teologia prenhe de certezas e preconceitos, de modo a tentar moldar ou aprisionar a Espiritualidade, não é construída, mas se apresenta feita pelo poder dominante, não promove o diálogo, geralmente se pauta por achismos e resseca o espírito e a própria comunidade, afastando-os da ação criativa da Espiritualidade.
Teologia é observação, construção e estudo, portanto é preciso definir objeto, método, ouvir o contraditório e, sobretudo, reconhecer a diversidade com que a Espiritualidade se manifesta, bem como o ser humano a reconhece, cultua e vivencia sua manifestação no cotidiano e na liturgia, na liturgia do cotidiano e no cotidiano da liturgia. Estudos teológicos realmente dialógicos, participativos e democráticos estão longe de ser ocasiões em que os orientadores “passam” informações e os demais as “absorvem”. O conhecimento é vivenciado, debatido, construído e respeitado em suas múltiplas abordagens e manifestações.
Ainda que numa leitura tradicional ocidental se visualize a Espiritualidade na verticalidade e o ser humano na horizontalidade, teremos aí uma encruzilhada, algo fundamental para os Povos de Terreiro. Na encruzilhada, a Espiritualidade “baixa”, “desce”, portanto participa da horizontalidade e vice-versa, ocorre a intersecção de espaços e planos. Ora, tal intersecção não ocorre porque um “eu” deseja ou não, ou ainda, apenas nos momentos litúrgicos. Ocorre porque é natural e essa naturalidade é potencializada nas liturgias. Não cabe, assim, achismos, mas vivência, observação, estudo.
Muitas formas de exploração e abusos ocorrem em nome da Espiritualidade. Evidentemente não se coadunam com a ética da Espiritualidade de promover a plenitude do ser humano. Essa plenitude é ameaçada das formas mais diversas: pelo medo, pela coerção, pela exploração do sentimento de culpa e inadequação, pela extorsão etc. Em nenhum momento, porém, a diversidade se coloca como uma ameaça à integridade da ação da Espiritualidade. Infelizmente distorções que ameaçam o desenvolvimento pleno do ser humano são confundidas com o respeito à diversidade, daí termos discursos apocalípticos como “Hoje não se pode falar nada e é preciso aceitar tudo em nome da diversidade!”. Ora, apegar-se a esse discurso vazio é depor contra si mesmo, uma vez que a diversidade deve contemplar a todos e todas. Para uma comunidade, tão desagregadora quanto a ação de exploradores é também a postura de quem se pretende baluarte e guardião (ã) dos valores, de modo inflexível e excludente. Em outras palavras, o problema não está na diversidade, mas no que se faz em nome dela, sejam manipulações (enganações, extorsões etc.) ou sua recusa (“discurso único”, “falar a mesma linguagem” sem considerar sotaques e tons de voz múltiplos, dentre outros).
Tome-se como exemplo a deslavada exploração econômica em diversas situações pontuais na religião de Umbanda. Quantas vezes a crítica a essa postura antiética se confunde com a crítica “achística” contra fundamentos de segmentos ou terreiros, quando uma leitura e análise atentas separariam os dois temas (mercantilização e fundamentos), não os confundindo num único balaio, nem apontaria segmentos específicos ou responsabilizaria as redes sociais, uma vez que tal mercantilização sempre houve, anterior inclusive a alguns segmentos umbandistas demonizados, amplificada, é verdade, pela internet e, de modo particular, pelas redes sociais.
A postura excludente se fundamenta numa suposta “Umbanda pura”. Sempre me pergunto se quem assim se denomina considera “impura” a Umbanda que os demais tocam. Mas o que seria essa Umbanda pura se quem afirma tocá-la incorpora elementos ausentes na Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade (TENSP), marco físico e temporal (15 de novembro de 1908) da identidade da Umbanda como religião? Alguma casa ou segmento apenas reproduz os conceitos, a liturgia e outros elementos da TENSP sem ter agregado outras características (temporais, regionais, linguísticas etc.)? “Não se pode ignorar a história da Umbanda!” É verdade, porém não apenas a genérica e/ou oficial, mas aquelas cujas vozes não chegam à maioria dos (as) umbandistas.
Afirmar que existe apenas uma forma de tocar Umbanda (a que toca, evidentemente, quem se vale desse discurso, dessa postura) significa distanciar-se da Espiritualidade e do estudo da Teologia. Quais os critérios para se dizer que “o que o outro toca não é Umbanda”, quando não se trata de explorações e abusos? Geralmente são fundamentos que alguém não (re)conhece ou não quer (re)conhecer, apoiando-se no discurso fácil de que se trata de modismo, ainda que muitos “modismos” se apresentem há mais de um século. Evoco essa característica uma vez que o critério parece se restringir ao temporal. Isso vale para o corte, os oráculos e tantos outros elementos: há Umbandas que se utilizam deles e outras não, assim como outros tantos fundamentos. Excluir quem vivencia fundamentos que se des/não-se-(re) conhecem traduz ignorância (literalmente, “não conhecimento”), prepotência contra a Espiritualidade e os próprios umbandistas, em tentativa de limitar a ambos.
Em diversos trabalhos, analisei questões linguísticas mal compreendidas por quem exclui, bem como aspectos da religião de Umbanda como conceitos de Orixás e sincretismo. Sem a intenção de aprofundar esses temas ou repeti-los, gostaria de me reportar brevemente ao sincretismo. É possível que o terreiro A não se valha dele enquanto o B se utilize de inúmeras formas. Em ambos os casos tem-se a ressignificação histórica, teológica etc. tanto de Orixás quanto dos santos católicos. O que os aproxima são as semelhanças, não as diferenças, vale dizer os fundamentos originais do culto aos Orixás em África, adaptados durante a Diáspora, ou o dogmatismo da canonização dos santos católicos. Ressignificar permite múltiplas leituras: dessa forma, valer-se ou não do sincretismo são dois caminhos que, de uma forma ou de outra, evocam a resistência do Povo de Axé. Nunca é demais lembrar: os dois caminhos se encontrarão numa encruzilhada, espaço de diálogo e criação por excelência.
A identidade umbandista é multifacetada, como a face da Divindade. Representar essa identidade com apenas um aspecto é reduzi-la, portanto, invisibilizá-la. A Teologia de Umbanda (ou melhor, as múltiplas teologias umbandistas) não pode se prestar a esse papel, ainda mais porque a religião nasce de processos de exclusão. Não bastasse ser contraditório a Espiritualidade não reconhecer a diversidade, seria “antiumbandista” propor uma unidade/unificação em vez da união, que se manifesta de múltiplas formas, inclusive pela colegialidade que une umbandistas em questões civis e legais, por exemplo. O respeito à diversidade não dificulta a identificação do que é Umbanda, pelo contrário, auxilia a compreensão do núcleo comum daquilo que caracteriza essa religião: a prática do bem, o respeito ao livre-arbítrio, à ancestralidade e à diversidade, a caridade (do assistencial ao estrutural), a ecologia vivenciada no cotidiano, a teologia pé-no-chão do terreiro e da vida, que não se encerra nos livros, mas deles também se utiliza.
Fica a dica: antes de dizer “Isto não é Umbanda”, busque entender a fundo o que é Umbanda, viaje, dialogue, visite terreiros, leia, pesquise, argumente, contra-argumente, conheça o contraditório e, sobretudo, descalce os pés e o coração!
Saravá Umbanda! Axé!
Ademir Barbosa Junior
Ademir Barbosa Júnior (Pai Dermes de Xangô) é dirigente da Tenda de Umbanda Caboclo Jiboia e Zé Pelintra das Almas (Piracicaba – SP), fundada em 23/4/2015. É Doutorando em Comunicação pela UNIP (Bolsa PROSUP/CAPES) e Mestre em Literatura Brasileira pela USP, onde se graduou em Letras. Pós-graduado em Ciências da Religião pelo Instituto Prominas, é professor e terapeuta holístico. [+ informações de Ademir Barbosa Junior]
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