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Detergente no padê

Por: Ademir Barbosa Junior


Foto: Reprodução

06/04/2024 | 12:27


Abner não gostava de Exu. Toda segunda-feira a mulher preparava um padê e colocava num canto do quintal. Tinha autorização do Pai-de-Santo para fazer isso em casa. O padê era para proteção e abertura de caminhos. Taynara, a esposa, era médium de terreiro. Abner detestava: era obreiro de uma igreja e queria ser pastor. Com o dinheiro, quitaria a casa e trocaria de carro. Um atraso a mulher com o joelho esquerdo no chão firmando vela e entregando copo de cachaça, charuto e alguidar com farinha misturada com dendê, pimenta, às vezes outras coisas. Abner só gostava de Exu na igreja, os fiéis de olhos arregalados vendo o Pastor Henrique conduzir o pessoalzinho da Rua de Baixo naquele teatrinho maluco que nem precisava de ensaio. A Igreja ficava na Rua de Cima, asfaltada. O pessoalzinho da Rua de Baixo gostava de fazer Exu, Pombagira, de assustar os fiéis. O Pastor Henrique pagava pouco, mas também dava lanche. Lanche é essencial nessas negociações. Abner aprendia tudo com Pastor Henrique. Nas batalhas espirituais, vale tudo. Jesus estava voltando e um dia ia assistir de camarote àquele espetáculo. Palavras do Pastor Henrique em noite de lanche com o pessoalzinho da Rua de Baixo (tinha dado duas notas a mais para a Marcela e Abner sabia que era para depois do lanche, a esposa do pastor em casa, grávida do pastorzinho, como o Henrique gostava de dizer, que é que tinha, Marcela era de-menor, mas tinha corpo, e o Pastor tinha cansaço, guerreiro das batalhas espirituais, precisava se descarregar um pouco, para se fortalecer e conduzir as coisas, Abner justificava, aprendia, ia fazer igual um dia, teólogo nato).




Mais do que não gostar, Abner não acreditava em Exu. Acreditava no mal, no diabo, num diabão, mas ele estava longe, tinha medo do Pastor Henrique. Exu não era o diabo porque nem existia. O mundo não era preto no branco, veja a Marcela com o Pastor Henrique. Mas isso não atrapalhava ninguém, a família dela até comia melhor, no fundo ela fazia o bem trepando com o pastor, isso era coisa pouca, e as mulheres estão aí para fazer o serviço. Taynara não, era altiva, afrontosa. Merecia lição. Bater, ele não batia, e não era por medo de cadeia. Era medo da mulher. Mulher que dava pinga para Exu, mas reclamava se ele bebesse (às vezes bebia com o pessoalzinho da Rua de Baixo, o pastor tolerava, talvez por medo, pois Abner sabia demais, talvez por compradrio de macho). Então Abner resolveu se vingar em Exu.


Numa manhã de segunda-feira, Taynara arriou o padê antes de ir para o serviço. Verão. Botou um vestido estampado e foi pegar o ônibus. Era gerente numa loja de celular. O marido tinha ciúmes das carnes de Taynara. Sabia que ela pensava em divórcio e não só porque ele tinha sumido da cama (de tanto medo da mulher, o pau não subia mais). Antes de sair, a mulher deu um sorriso, passou a mão no rosto do marido, beijou de leve os lábios secos de homem desempregado (vivia dos trocos que o Pastor Henrique dava). Abner tinha pensado em tudo. Queria mijar no copo de marafo, mas estava cheio, não tinha o que completar. Então foi à cozinha e pegou o detergente neutro, amarelo, e jogou um bocado na farofa de Exu, mexeu com as mãos, rearranjou as pimentas. “Vá se fudê!”, disse imitando a voz da mulher saudando Exu com um “Laroiê!”. Gargalhou, insano. Se Exu existisse, já teria vindo reclamar.


E veio na mesma hora. Abner que não percebeu que a gargalhada não era dele, mas de um outro. Saiu de casa do jeito que estava: calça social preta, sem a camisa branca, as meias, o sapato. Foi até o bar do Ademário, pediu charuto (vendia a unidade), um litro de cachaça, Ademário pôs na conta. Foi até a mãe do Ademário, sentada numa cadeira de ferro, dobrável, a velha bateu palmas três vezes, Abner baforou o charuto na perna dolorida e esfregou cachaça com as mãos, receitou um chá, ensinou onde era o terreiro onde Taynara era médium, falasse com ela, sabia que era longe, mas um ajudava o outro, era combinar. A velha sabia que era Exu, e não Abner, agradeceu, com lágrimas nos olhos. Então Exu, incorporado naquele cavalo sem freio, suado, foi à Rua de Baixo, bateu palmas e gritou para o pedreiro Roberto. Tinha serviço na igreja, naquela hora mesmo, o pastor tinha mandado buscar. Roberto subiu, não gostava de Abner, tinha medo dele, do pastor, alguns falavam em milícia, traficantes, todos amigos deles, com fuzil numa mão e bíblia na outra. Chegaram à igreja, deram a volta, até os fundos. Exu chutou a porta de um quartinho, Pastor Henrique por cima da Marcela, da filha de Roberto, deitada em cima de uma colcha de lã quadriculada. Roberto puxou o pastor e começou a espancá-lo até o rosto parecer carne moída de segunda, Exu segurou o homem, que então se voltou contra a filha, que já havia se vestido. Exu segurou a mão do homem, olhou firme em seus olhos e disse que a menina precisava de um pai, não de um carrasco. Foram saindo juntos, algumas mulheres chegando para limpar a igreja, esperando o pastor à porta. Exu disse a elas que ele estava no fundo, fossem acudir, não se sentia bem. Elas estranharam Abner sem camisa e sapatos, pisando no chão quente, suado e fedendo à cachaça, Roberto com o rosto vermelho, Marcela descabelada, o que era aquilo? Exorcismo matinal? Exu riu do pensamento delas.


Exu perambulou por mais algumas ruas do bairro, dançou, curou, correu om as crianças, olhou torto para os olheiros do tráfico e da milícia. Depois cruzou a BR e foi para o outro lado da cidade. Taynara chegou tarde, exausta: depois do trabalho, faculdade de Psicologia. O marido devia estar na igreja. Tomou banho, recolheu o padê. Foi preparar um lanche. Vontade de comer. Vontade de homem. Vontade de dormir. O celular tocou. Pai Robson. À meia-noite? Com a voz calma de sempre, Pai Robson explicou à filha que Abner tinha chegado ao terreiro virado no Exu, que ela não se preocupasse, o marido tinha tomado banho de ervas, estava deitado no terreiro, dormindo. Tinha chegado umas nove horas, Pai Robson vindo do turno na metalúrgica (o terreiro era no fundo da casa). Que a filha descansasse tranquila, depois conversavam com calma, estava tudo bem. Taynara agradeceu, pediu a bênção, só podia mesmo ser Exu, Abner nem sabia o endereço do terreiro. Ouviu uma gargalhada, sentiu cheiro de charuto. Terminou de comer o lanche, lavou prato, talher e copo com detergente neutro, amarelo, escovou os dentes e foi dormir. Fumando devagar, Exu velava a casa.




Ademir Barbosa Junior - AxéNews

Ademir Barbosa Junior

Ademir Barbosa Júnior (Pai Dermes de Xangô) é dirigente da Tenda de Umbanda Caboclo Jiboia e Zé Pelintra das Almas (Piracicaba – SP), fundada em 23/4/2015. É Doutorando em Comunicação pela UNIP (Bolsa PROSUP/CAPES) e Mestre em Literatura Brasileira pela USP, onde se graduou em Letras. Pós-graduado em Ciências da Religião pelo Instituto Prominas, é professor e terapeuta holístico. [+ informações de Ademir Barbosa Junior]

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