Por: Ana Paula Mendes de Miranda
18/08/2024 | 22:53
A história dos terreiros do Rio de Janeiro pode ser contada pela sua migração. O crescimento da cidade e o “bota-abaixo” do prefeito Pereira Passos (1902-1906) forçaram os terreiros a saírem da região central da cidade para os subúrbios e municípios da Baixada Fluminense. Atualmente está em curso outro “bota-abaixo”, cuja motivação é outra.
Nos anos 2000, os ataques a terreiros começaram a ser noticiados pela mídia, inicialmente associados a conflitos privados, como brigas de vizinhos, e a problemas por conta do uso do espaço público. Foi no ano de 2006 que a imprensa mencionou, pela primeira vez, um novo tipo de perseguição aos terreiros de Umbanda e Candomblé, realizada por pessoas que se identificavam como “traficantes evangélicos”, diferenciando-se das violações anteriores: estava proibido usar roupas brancas e tocar atabaques.
Se antes as proibições eram originadas em ordens governamentais, que afetavam as práticas religiosas, mas nunca conseguiram impedir totalmente, agora as determinações passaram a ser de criminosos que se apresentam como os “donos” do lugar. Esses mesmos sujeitos se utilizam de imagens e citações bíblicas para delimitar o que seriam os seus territórios.
Esses domínios – territoriais e religiosos – são contestados, afinal não se trata de ordens legítimas ou legais. Muito embora existam grupos evangélicos que questionem esses pertencimentos religiosos, alegando que uma pessoa não pode ser religiosa e ter uma vida vinculada ao crime. Há também grupos evangélicos, que legitimam as ações desses domínios, quando realizam as unções das armas para o enfretamento ao “demônio”. O fato é que “traficrentes” e “milicrentes” realizam um governo local, a partir de ações criminosas, que misturam interesses comerciais, religiosos e doutrinários, que resultam num projeto de poder que impacta diretamente nos modos de vida das populações, em especial, aos candomblecistas e umbandistas.
É importante explicar que as atividades não se restringem ao tráfico de drogas ou ao controle do território, mas estão associadas às disputas por gerenciamento de bens e serviços (gás, luz, “gato net”, transportes). Elas afetam diretamente os candomblés e as umbandas, pois o tráfico, assim como as milícias, adotou aspectos da cultura neopentecostal para legitimar e difundir suas práticas. A difusão dessa visão do mundo está presente na sociedade pelo crescimento de evangélicos na população brasileira, a forte estratégia de conversão em ambientes prisionais e outros espaços públicos. Mas isso não significa dizer que exista uma fusão entre o mundo criminoso e o mundo religioso.
O que temos visto é o uso de símbolos cristãos para legitimar ataques a terreiros que são vistos como “ameaça” ao regime autoritário que pretendem impor. Em julho deste ano, a Igreja Católica também se tornou alvo. As paróquias de Santa Edwiges e de Santa Cecília, em Brás de Pina, e Nossa Senhora da Conceição e Justino, em Parada de Lucas, utilizaram suas redes sociais para anunciar a suspensão de atividades após sofrerem ameaças por parte de homens armados com fuzis, supostamente agindo sob as ordens de um traficante, que atua como “chefe” na região, que está foragido.
A novidade entre os grupos criminosos é a apropriação de símbolos da cultura judaica, incluindo, a bandeira de Israel para simbolizar força e controle territorial, refletindo uma associação direta com a luta e vitória atribuídas ao povo de Israel pelos grupos evangélicos pentecostais. Essa fusão entre símbolos religiosos e imposição de um domínio armado visa consolidar a ideia de um controle territorial, associada à conquista de apoio comunitário, promovendo uma forma particular de venda de proteção e trocas de serviços, favores e, até mesmo, de votos.
Os terreiros da mesma região já foram ameaçados anteriormente, alguns foram fechados definitivamente, outros mudaram suas práticas e tentam resistir de forma silenciosa. Chama atenção o modo pelo qual o poder público responde, de modo diferenciado às ameaças. Sobre as igrejas rapidamente foi reforçado o policiamento e negado que tenha havido o fechamento. Alegaram que tudo foi boato das redes sociais. Não se viu nada semelhante aos constantes ataques aos terreiros, que seguem lutando para existir.
A reação da sociedade também não é a mesma. Quando se lê os comentários percebemos uma indignação a essas violações e uma cobrança de respostas do poder público nos casos que afetam os católicos. Quando atingem os umbandistas e candomblecistas o racismo se revela. É comum se identificar falas que apoiam e justificam as agressões. Nos dois casos estamos diante de um direito que foi desrespeitado – a livre manifestação religiosa, que se soma ao crime de racismo, no caso dos terreiros.
O tratamento desigual entre terreiros e cristãos não é novidade. A história está repleta de exemplos de perseguições e discriminações que, todavia, não conseguiram extinguir as tradições afro-brasileiras. O país todo tem registros também de movimentos de resistência e luta por direitos protagonizados por afrorreligiosos. É essa a razão pela qual, ao contrário do que alguns profetizam, não será o fim dos terreiros, muito menos das práticas e crenças.
Ana Paula Mendes de Miranda
Doutora em Antropologia (USP); Professora da Universidade Federal Fluminense; Coordenadora do Ginga; Pesquisadora do INCT Ineac.
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