Por: Mãe Viviane de Oxum
23/08/2023 | 05:49
Nada do que fazemos na vida começa do nada, como se iniciássemos do zero todo que fazemos. Antes disso, tudo na vida se faz a partir de condicionamentos. O idioma que falamos, as roupas que vestimos, a comida que comemos, a escola que estudamos, a sabedoria que aprendemos ao longo da existência – tudo isso nos condiciona e não fomos nós que os inventamos. Somos filhos e filhas do legado que recebemos e assumimos. Em latim, legar se diz tradere, de onde vem a palavra tradição. Tradição é legado. A presença do idioma português no Brasil é um legado da colonização portuguesa. As roupas que vestimos é um legado da moda da nossa cultura. As crenças que recebemos da nossa família e da nossa sociedade também são legados. Tudo isso nos condiciona, mas nada disso nos determina. Vale lembrar que condicionamento não é determinação. Determinar é definir de uma vez por todas quem somos. Condicionar significa que somos quem somos através da relação com elementos que não escolhemos, mas que compõem a nossa situação histórica, familiar, social, religiosa etc. Grande parte desses elementos vêm do passado: passado da cultura, da família, da religião em que fomos criados/as. Em outras palavras, eles vêm do passado ancestral, aquele passado que legamos, que se faz tradição e pelo qual temos de responder ao longo da nossa vida, pois ele condiciona (mas, não determina) a nossa existência.
Ancestralidade é coisa séria. Somos quem somos porque somos condicionados/as por mortos-vivos, por ausências presentes, por vidas mortas que continuam a viver através de nós. Mas, há ancestralidades e ancestralidades. Hitler continua a ser presente entre nós. Sua violência deu frutos e muita gente deseja repetir os seus feitos hoje. O mesmo acontece com os colonizadores da nossa terra: há muita gente que cultiva a presença da violência colonial nos dias de hoje e ainda deseja matar indígenas e produzir novas escravidões. Esse passado violento ainda está em nós. Essa ancestralidade assassina ainda vive em nós. Porém, há outra ancestralidade, aquela que, quando cuidada e cultivada, nos alavanca, potencializa o nosso futuro e cria novos horizontes de liberdade. Essa ancestralidade é celebrada e vivida nos Candomblés e Umbandas. A essa ancestralidade a nossa espiritualidade acolhe como fonte de vida plena.
É comum falar do culto aos Egunguns e assim o fazemos reduzindo a sua realidade à ancestralidade africana. Sim, o culto dos Egunguns começou na África negra e é cultivado no Brasil por causa da resistência de pessoas pretas escravizadas que cuidaram da memória dessa tradição espiritual. Contudo, é preciso lembrar de uma lição que as Umbandas e a tradição Omolokô nos ensinam: é necessário cuidar da ancestralidade brasileira marginalizada pela história do Brasil oficial. Caboblos/as, Pretos e Pretas-Velhas, Pombagiras, Erês, Boiadeiros/as etc. são ancestrais marginalizados/as que aparecem como protagonistas e possuidores de sabedoria. Não seriam esses ancestrais Egunguns dotados de uma brasilidade subversiva? Isso mesmo: são ancestrais que subvertem o Brasil dos coronéis e da elite econômica, que subvertem o cristianismo oficial que celebra um Jesus branco e colonizador. São ancestrais que nos libertam para uma outra sociedade possível: aquela que subverte a exclusão e dá vez e voz para quem nunca pôde falar.
Espiritualidade e ancestralidade – esse é o tema. Somos mais espiritualizados quando sabemos nos relacionar com ancestrais cujas vidas não produzem opressão, mas liberdade, justiça e respeito. Por isso, diferentemente do que muita gente diz, egun (vivente que morreu) não é espírito sem luz, ser não evoluído. Quem morre se transforma em desafio para quem continua a viver na Terra. Como cultivar sua presença alavancadora? Como transformar a vida de quem morreu em alimento que fortalece quem vive e que potencializa também quem se despediu desta vida? É aí que mora a espiritualidade. É aí que nasce o sentido de todos os cultos à ancestralidade. Quando isso é feito por meio da presença de mortos-vivos que sofreram diversas injustiças ao longo de sua vida na Terra, como acontecem com ancestrais que se revelam como Guias nas Umbandas, então, percebemos o sentido político, ecológico e ético do culto aos/às ancestrais. Assim, o passado ancestral se torna potência criadora de futuros mais belos.
Mãe Viviane de Oxum
Mãe Viviane de Osun, Ìyálòrìsá do Àṣẹ Riqueza das Águas (Ẹgbẹ́ Awo Ọmọ Oṣùn T’Loya). Dirigente do terreiro de umbanda, Vovó Cambinda do Cruzeiro. Guiada pelas mãos de minha Mãe carnal Mãe Fátima de Oyá, que pelas mãos de minha Avó Nadir de Ogun, que é uma mulher que carrega, ancestralidade no sangue! [+ informações de Mãe Viviane de Oxum]
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