Por: Ademir Barbosa Junior
13/09/2023 | 10:09
Exu, o Senhor do Mercado, da Moeda, do Pataco, do Comércio é moeda de duas faces, mas não de duas caras; de duas perspectivas/versões/verdades, mas não de ingerências, falácias, mentiras. Popularmente, o diabo hebraico-cristão é chamado de “pai da mentira”. Ora, Exu não poderia mesmo ser o diabo (diabólico), uma vez que aponta a verdade (simbólico), às vezes de forma direta (linha reta e assertiva), outras de modos mais imbricados (parábolas - em ambos os sentidos - , espirais, encruzilhadas). Forma e conteúdo variam, por isso muitos temem Exu, como temem a poesia, a reflexão, o diálogo, o argumento, o estudo. Exu é Pai da Verdade Poética. Não à toa, é o patrono das artes, sobretudo do teatro, em sincretismo com Dionísio (Evoé!), pois Exu representa, recria, reinterpreta, ressignifica. É a nota dissonante que leva o músico sonolento e mecânico a retomar a sinfonia. Desarmoniza para harmonizar.
Exu é o trickster, presente em inúmeras culturas, filosofias, teologias. É o bobo da corte, o que faz rir. Poderoso, o único que pode dizer mil verdades à face do soberano (poder constituído, autoridades do mundo), ridicularizá-lo enquanto toda a corte ri. É a criança corajosa que aponta a nudez do rei. Exu tem o dedo fálico em riste para apontar, não em julgamento moralista, mas para evidenciar os moralismos, sempre com humor, ironia, deboche. Ridendo castigat mores. Exu ri atemporalmente dos e por conta dos absurdos. E, se um dia, os absurdos cessarem? Exu vai continuar a rir, de satisfação.
Conta-se que Oxalá ia visitar seu filho, Xangô. Aconselhado pelo oráculo a algumas energizações, desdenhou o conselho e seguiu viagem. No meio do caminho, à beira de um rio, aproveitou para tomar banho, pois sentia muito calor. Exu apareceu e, às escondidas, jogou azeite de dendê na roupa de Oxalá e a amarrotou toda. Quando saiu do banho, Oxalá ficou surpreso, mas, como não tinha outra roupa, vestiu aquela e seguiu viagem. Depois de muito andar, viu o cavalo de Xangô, que corria em disparada, fugido. Conseguiu segurar o animal. Os soldados de Xangô, quando viram a cena, detiveram Oxalá, pensando tratar-se de um ladrão de cavalos e o colocaram na cadeia. O reino de Xangô passou por longa carestia, durante sete anos. Ao consultar os babalaôs, foi informado de que havia alguém preso injustamente em seu reino, motivo da carestia. Xangô, então, buscou esse prisioneiro e encontrou seu pai, Oxalá. Pediu-lhe desculpas e o banhou, ofertando-lhe novas roupas brancas. Também se vestiu de branco e desfilou com Oxalá às costas, à vista de todos. O reino de Xangô voltou a prosperar.
Esse relato ancestral, mitológico e arquetípico, como os demais, precisa ser lido à luz da simbologia, e não ao pé da letra. Nesse tempo mítico/mitológico, Orixás e seres humanos convivem no mesmo plano, misturam-se no cotidiano, inclusive com casamentos, filhos etc. Também consultam os oráculos/oraculistas para terem pistas e orientações sobre suas escolhas e, quando as desconsideram-, valem-se do livre-arbítrio, mas se desarmonizam, perdem Axé. Oxalá, aqui imagem arquetípica do homem mais velho, teimoso e sabe-tudo age de maneira imprudente (portanto, imatura) e segue viagem sem preparar os devidos ebós. Abre caminho para a intervenção de Exu, o trickster, aquele que vai girar a moeda, a roda da vida. Mancha a roupa de Oxalá com dendê (elemento incompatível com esse Orixá). Amarrota suas roupas e suas certezas. Oxalá, ao se refrescar, não imagina que esse banho foi iniciático, abriu-lhe novos caminhos e novas encruzilhadas. Em breve, vai perceber que ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, como ensinou Heráclito. Segue viagem e encontra o cavalo de seu filho, fugido. Tal pai, tal filho, tal cavalo: impetuosos, instintivos, viscerais, em outras palavras, difíceis de serem domados. É confundido com um ladrão, sua posição é invertida no melhor exemplo de dicotomia príncipe/mendigo imortalizada na literatura contemporânea por Mark Twain, porém aqui de forma brutal. De rei a prisioneiro. Xangô, por sua vez, embora também rei, ainda apresenta traços de imaturidade e teimosia ou não teria levado sete anos para consultar o oráculo a respeito da carestia em seu reino. Descobre uma grande injustiça em seu reino e busca repará-la (amadurecimento). Além de vestir o pai com as roupas mais brancas, veste-se da mesma maneira, comungando do Axé de Oxalá. Carrega o pai às costas, como gesto de arrependimento e humildade, à vista de seus súditos. Um rei carregando outro rei, sendo que Oxalá é patrono dos corcundas, imagem lembrada pela composição do pai às costas do filho.
Esse é um relato que trata de Xangô Airá, contudo nosso olhar, nesta leitura, se deterá na ação de Exu, o gatilho de todas as peripécias, a subversão que proporá uma ordem mais harmônica e equilibrada, desestabilizada por várias razões: teimosia, irresponsabilidade, desconsideração para com os saberes ancestrais/espirituais/oraculares, injustiça etc. vivenciadas por Oxalá e Xangô. Exu está à espreita, como agente da Lei Divina e Universal, não como castigador, punidor, carrasco, e sim como pedagogo a lembrar a Lei de Ação e Reação, de Causa e Efeito, sempre em respeito ao livre-arbítrio, pois apresenta (e provoca) reflexões e mudanças, contudo a escolha é de cada um. As decisões pessoais incidem no coletivo (a carestia pela injustiça é de todo o povo), assim como o (re)equilíbrio pessoal reverbera na comunidade. Todos ganham com a reorganização pós-desestabilização provocada por Exu em ressonância à desestabilização inicial provocada por Oxalá por desdenhar o oráculo e por Xangô em sua intempestividade. Se Exu é o vermelho e Oxalá, o branco, Xangô é o equilíbrio entre os dois polos, branco e vermelho, o fiel da balança, a própria balança, o Orixá da Justiça. Xangô Airá, por sua vez, se torna o Xangô branco, com fundamentos com Oxalá, o que, liturgicamente hoje nos terreiros se traduz em cores, alimentos e especificidades diferentes das dos outros Xangôs. Inúmeras lições podem ainda ser meditadas a partir desse relato, uma delas, que muito tem a ver com o Axé de Exu é a questão do instinto, representado na narrativa pelo cavalo, mas também pelos caracteres de Oxalá e Xangô, três personagens indóceis. Exu não propõe a domesticação, o refreamento, mas o reconhecimento e a harmonização dos instintos. Pedagogo e terapeuta, auxilia a integrar luz e sombra.
Exu evoca o arquétipo do que não se deixa colonizar. Ou por que o teriam associado ao diabo, ao mal, para detratá-lo, desautorizá-lo? Tarefa terrível dos primeiros missionários cristãos em África, dos traficantes e escravocatas naquele continente e nas Américas que surte efeito até hoje no senso comum e na vida dos povos de terreiro, dos negros em geral, mas que jamais abalou Exu em sua potência, energia, arquétipos e cultos. A Umbanda, com sua matriz cristã primitiva (vale dizer, da essência da mensagem cristã) e não dogmática nunca se propôs a domesticar Exu, mas de acolhê-lo e reposicioná-lo com destaque, reverência e gratidão. Isso vale para o Orixá e para a Esquerda. Também na Umbanda, “sem Exu não se faz nada”. Seria estranho se fosse possível fazer, pois, nesse caso, a Umbanda estaria à parte do próprio Universo.
(BARBOSA JR., Ademir. Exu e a Teologia do Desalinho. Rio de Janeiro: Namastê, 2021, pp. 16-19)
Ademir Barbosa Junior
Ademir Barbosa Júnior (Pai Dermes de Xangô) é dirigente da Tenda de Umbanda Caboclo Jiboia e Zé Pelintra das Almas (Piracicaba – SP), fundada em 23/4/2015. É Doutorando em Comunicação pela UNIP (Bolsa PROSUP/CAPES) e Mestre em Literatura Brasileira pela USP, onde se graduou em Letras. Pós-graduado em Ciências da Religião pelo Instituto Prominas, é professor e terapeuta holístico. [+ informações de Ademir Barbosa Junior]
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