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Filosofia, existencialismo e o ato negro de existir

Por: Gisele Rose


Foto: pngtree

10/10/2024 | 08:37


O primeiro esforço do existencialista é de pôr todo ser no domínio do que é e de lhe atribuir a total responsabilidade da sua existência. E, quando dizemos que este ser é responsável por si próprio, não queremos dizer que é responsável pela sua estrita individualidade, mas que é responsável por todos os seres.



A definição de existência está ligada a todas as experiências vividas que irão compor o ser, experiências e escolhas únicas e individuais que irão influenciar diretamente na essência e na subjetividade de cada um. Cada sujeito se constrói com base na sua existência, que terá como matriz fundamental suas subjetividades, como conhecimento do seu corpo, espaço e entorno. O que significará aqui dizer que a existência precede a essência? Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define (SARTRE, 1978).


O ser é ao mesmo tempo simples e múltiplo, pois comporta elementos físicos, psíquicos e espirituais (BÂ, 1981), sendo tudo aquilo que se apresenta com maior facilidade de compreensão à existência física ‒ essa, por sua vez, é precedida por uma preexistência, que aqui será denominada de essência:


O ser humano não é uma unidade monolítica, limitada a seu corpo físico, mas sim um ser complexo habitado por uma multiplicidade em movimento permanente. Ele não se trata, portanto, de um ser estático, ou concluído. A pessoa humana, como a semente, evolui a partir de um capital primeiro, que é o seu próprio potencial e que vai se desenvolvendo ao longo da fase ascendente de sua vida, em função do terreno e das circunstâncias encontradas (BÂ, 1981, p. 3).


A construção existencial demonstra que existe uma essência humana que nos determina, mas essa essência é constituída por meio da existência, ou seja, a partir das escolhas feitas. De acordo com o existencialismo, é impossível achar em cada homem uma essência universal que seria a natureza humana, existe, contudo, uma universalidade humana como condição. As situações históricas variam: o homem pode nascer escravo numa sociedade pagã ou senhor feudal ou proletário. Mas o que não varia é a necessidade para ele de estar no mundo, de lutar, de viver com os outros e de ser mortal (SARTRE, 1978).


O pensar existencialista perpassa a construção de uma ideia de ser humano que não é universal, reconhecendo que esse universalismo invisibilizou sujeitos e suas subjetividades. Fanon, ao afirmar que se descobriu objeto em meio a outros objetos, está apontando a dificuldade de se pensar uma existência negra. Essa existência advém de um projeto ancestral que precisa ser ressignificado com base na resistência.


Ao propor um diálogo entre a definição de existencialismo escrita pelo filósofo Jean-Paul Sartre e a construção existencial do ser negro, percebemos que este existencialismo proposto não abarca o racismo sofrido pelos negros, posto que está incluso em uma ideia de humanismo que supunha ser universal. Ressaltamos do que se expôs, que o existencialismo que se apresenta sob a forma de um humanismo e de uma filosofia da liberdade é, no fundo, um pré-compromisso, um projeto que se não define (SARTRE, 1978).


Debruçar-se sobre a construção existencial das identidades negras nos faz refletir sobre a possibilidade de funcionamento de uma essência eurocêntrica que antecede a existência do ser negro, já que essas identidades passam a se constituir sob a égide da ideia europeia – que se tornou hegemônica – de que há um sujeito universal e essencial.


A ideia de um humano universal foi refutada pelo filósofo Frantz Fanon (FANON, 2008) e seguiu sendo questionada por autores que problematizaram reflexões feitas a partir desse pressuposto para compreender questões ontológicas, apontando para a necessidade de se tomar alguns cuidados para que seja possível entender e situar sistemas que referenciem o ser negro, pois:


A definição inferiorizante do negro perdurou mesmo depois da desagregação da sociedade escravocrata e da sua substituição pela sociedade capitalista, regida por uma ordem social competitiva. Negros e brancos viam-se e entreviam-se através de uma ótica deformada consequente à persistência dos padrões tradicionalistas das relações sociais (SOUZA, 1983, p. 20).


Não podemos afirmar que exista uma igualdade dos homens diante do mundo, sendo assim, cada existência é única. Mas, também não podemos afirmar que todos os homens são vistos como homens e que suas existências são referenciadas da mesma forma, pois o homem apresenta-se com uma escolha a fazer. Muito bem. Antes do mais, ele é a sua existência, no momento presente, e está fora do determinismo natural. O homem não se define previamente a si próprio, mas em função do seu presente individual (SARTRE, 1978). Nesse contexto, podemos afirmar que cada existência se reflete em práticas que irão compor cada essência. Atentar para a existência de um processo que é de fora para dentro nos faz perceber a importância de pensar sobre nossas ações.


Pensar a definição de essência se faz necessário para que possamos entender as subjetividades de cada sujeito. Essas subjetividades se relacionam com a existência e, nessa relação, ambas podem estar num constante movimento de construção e reconstrução.

A existência pensada a priori não desconsidera a individualidade e a ancestralidade de cada sujeito. Essas perspectivas (individual e ancestral) devem permear todo o processo reflexivo do existencialista que irá propor a formação de identidades, entendendo que cada sujeito se descobre surgindo no mundo, e neste processo, irá se definindo. Assim, revela-se que as existências são mutáveis e complexas.


Referências:

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.

HAMPATÉ BÂ, A. A noção de pessoa na África Negra. Tradução de Luiza Silva Porto Ramos e Kelvlin Ferreira Medeiros [1972]. In: DIETERLEN, Germaine (ed.). La notion de personne en Afrique Noire. Paris: CNRS, 1981, p. 181-192.

SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Edição Graal, 1983.



Gisele Rose - AxéNews

Gisele Rose

Filósofa e escritora. Professora da Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ). Mestra em Relações étnico raciais pelo Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ), Especialista em Energia e Sociedade no Capitalismo Contemporâneo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Graduada em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)...  [+ informações de Gisele Rose]  


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