Por: Iya Paula de Odé
28/01/2024 | 16:23
Finalizamos o mês de janeiro comemorando o dia da visibilidade trans. Em 29 de janeiro de 2004, foi organizada em Brasília a campanha “Travesti e Respeito”. O ato foi um marco histórico contra a transfobia, nascendo assim o Dia Nacional da Visibilidade Trans. Como as casas de candomblé tem tratado este tema? O que os sacerdotes e sacerdotisas têm feito para a inclusão com respeito da população trans nas casas de axé?
O assunto é delicado para quem ainda insiste em seguir dogmas preconceituosos das casas tradicionais. Mas em um momento teremos que rever esses conceitos sociais dentro das nossas casas de axé sem perder o cerne da tradição religiosa, que é de suma importância. Com um pouco de compaixão e boa vontade, é possível.
Tenho pesquisado bastante sobre os avanços que tivemos na estrutura do nosso candomblé, sobretudo das casas tradicionais. Tive uma conversa muito rica com meu ogan Moisés de Xangô sobre os movimentos da travessia, do nosso candomblé na diáspora, e juntos percebemos que muitas coisas já foram mudadas. A contar que as mudanças foram feitas a partir da própria diáspora. Houve uma readequação dos princípios iorubás, bantus, gêges para que formássemos o candomblé no Brasil e esse dinamismo continua até os dias atuais.
Antigamente, por exemplo, o yawo ficava um ano na casa de santo após a sua feitura, sendo liberado para voltar para sua casa após a obrigação de um ano apenas. Depois disso, o tempo de resguardo passou a ser de 6 meses e, depois, de 3 meses. Na minha época, éramos obrigados a usar, durante 3 meses e 7 dias após o roncó, roupa branca, incluindo pano de cabeça, todos os fios de conta, delogum e ainda ter o corpo coberto com pano da costa. Para além disso, os yawos eram levados para assistir uma missa na igreja católica a fim de, assim, complementar a obrigação. Como se tivéssemos que dar satisfação à igreja para validar a nossa iniciação. Quanto a ter que ir à igreja, eu quero acreditar que essa tradição tenha sido totalmente abolida das casas de candomblé. Vale ressaltar que, neste tempo de que falo, a intolerância religiosa não era tão ferrenha quanto é hoje em dia.
E é a partir das vestimentas que a transfobia começa a ser revelada.
Quando olho para uma pessoa, a vejo como? Como homem ou como mulher? Eu necessito olhar para suas partes íntimas para dizer se é homem ou mulher? Ou só uma passada de olho já basta? Como a pessoa é lida quando visualizada? Roberta Close sempre foi lida como ELA, primeiro como uma mulher travesti, depois como uma mulher trans. Esse “reconhecimento” aconteceu porque ela era tão perfeita como uma mulher? Porque ela conseguiria enganar qualquer um? E se Roberta Close fosse de axé? Como seria chamada? De Roberto? Teria que colocar calça e camisa, tal qual os homens da casa? Tudo bem, mulheres também usam calça e camisa... Então, vou dar uma segunda situação. Tammy, filho de Gretchen, era visto como ELA e passou a ser visto como ELE. Com barba, cabelo no peito, sem seios. E se ele fosse de axé? Você o colocaria na sala de baiana?
A pergunta fica aí, para pensarmos que os movimentos continuam acontecendo e que mudanças na estrutura religiosa são necessárias. Não vejo indignação coletiva quanto ao metaterreiro, que na realidade já está acontecendo (isso não é só uma piada do TIK TOK (...). Mas as pessoas trans no candomblé são tabu.
Sei também que em meio a tantas siglas para se referir à comunidade LGBTQIA+, fica mais complicado nomear, porém é inadmissivel chamar uma mulher trans de viado ou um homem trans de sapatão. Onde está a dificuldade em respeitar essas pessoas? Às vezes nem tudo que a gente pensa que é certo, está certo. A transfobia é crime no Brasil, nós de terreiro não podemos mais ignorar este fato.
Sei que muitos que estão lendo este texto podem estar buscando em suas mentes contrapontos, mas um ponto não pode ser contestado: o preconceito.
Esqueçamos um minuto as tradições e olhemos para as leis. Antigamente, a escravidão era legal e legítima. Hoje, não é mais. As mulheres do século passado, não tinham direito a voto, por exemplo, hoje já têm. Antes era normal o racismo explícito e recreativo, hoje é crime. Antigamente, era normal educar nossas crianças com tapas, hoje é crime também. E onde o transfóbico encontra liberdade para matar pessoas trans com a certeza da impunidade?
O terreiro é um espaço de educação, de acolhimento e de amor. Quando exclui pessoas trans, para além da contradição, o terreiro está pactuando com dois crimes: um de transfobia e outro de discriminação. Quando se nega acesso de pessoas com base em gênero e/ou raça, se configura crime também.
Na Nigéria, por exemplo, a homossexualidade é crime. Sabemos que as leis de cada país acompanham a ideologia religiosa dominante, que neste caso é a muçulmana. Porém, no trato religioso em Nigéria, a sexualidade do indivíduo é o que menos interessa, ele é tratado da mesma forma independente de sua orientação sexual. E por que aqui no Ocidente ainda estamos discutindo esse assunto?
O Brasil registrou, em 2020, 237 mortes violentas de LGBTQIA+, mortes estas relacionadas à sua orientação sexual ou à identidade de gênero, segundo dados do Grupo Gay da Bahia (GGB), que há 41 anos divulga o Relatório Anual de Mortes Violentas de LGBTI no Brasil. Foram 224 homicídios (94,5%) e 13 suicídios (5,5%) de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Pela primeira vez, desde 1980, travestis ultrapassaram gays em número de mortes: 161 travestis e trans (70%), 51 gays (22%) 10 lésbicas (5%), 3 homens trans (1%) e 3 bissexuais (1%), além de 2 heterossexuais confundidos com gays (0,4%).
Pessoas trans, existem! Pessoas trans também têm Orixá! Pessoas trans têm direito aos cuidados espirituais de forma séria e legítima. É possível inserir e transcender, sem transgredir o sagrado. Enquanto estamos aqui, pessoas trans estão morrendo.
Volto a perguntar, após as reflexões acima: você, sacerdote ou sacerdotisa, está preparado para receber com respeito uma pessoa trans em sua casa de axé? Ou ainda não está preparado para essa conversa?
Iya Paula de Odé
Iyalorixá Paula de Odé, idealizadora e presidente do Instituto Ọṣẹ Dúdú, Presidente do Afoxé Ómó Ifá - RJ, ativista, palestrante e pesquisadora do grupo Africanias da escola de música da UFRJ
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