Por: Joana Bahia
03/05/2024 | 14:31
Menções as iabás já existiam nos jornais cariocas. A exemplo João do Rio publicou na revista Kosmos, de dezembro de 1904, uma matéria intitulada “O natal dos africanos”, em que mostra a importância do mês de dezembro para se festejar vários orixás no candomblé, dentre eles Iemanjá. Nesta matéria em especial, se apropria de termos próprios da religião (babalaôs, ebós e especifica os vários nomes dos orixás) e descreve os ritos de sacrifícios de animais a Xangô e Oxum.
A imprensa carioca já que mencionava os ritos e oferendas as deusas africanas desde a virada do século XIX e início do século XX, e ao longo de décadas cresceram as devoções à Iemanjá, que se tornou grandiosa a partir da década de 40. A grande senhora dos setes mares era louvada por todos sem que todos precisassem combinar, se encontravam em todos os cantos da cidade, saindo das matas, das praias desertas, dos lugares mais estranhos e ermos para suas oferendas serem postas “de peito aberto” nas águas cariocas.
O crescimento de oferendas e a presença pública dos afros religiosos era notória nos anos 1950, provocando reações do Bispo Dom Jaime de Barros Câmara_ arcebispo da cidade do Rio de Janeiro de 1943 a 1971_ à festa do transe coletivo nas ruas da cidade e, no deslocamento maciço entre saídas das igrejas para depositarem flores à Iemanjá na travessia das barcas entre Rio e Niterói e na totalidade das praias cariocas, compreendendo áreas nobres, como Copacabana, Leme, Leblon e outras consideradas menos nobres.
Uma das matérias de jornal de 19 de janeiro de 1954, escrita por L. A. leal de Souza relatava que os cariocas não apenas percorriam as praias de Ramos até ao do Leblon, mas também médiuns e cambonos riscavam o chão das barcas entre Rio e Niterói com suas pembas e transformam esta em um altar de flores no último dia do ano. Também no mesmo ano em 27 de abril começam a aparecer as matérias que relacionam a fé do carioca a Ogum sincretizado com São Jorge e aos milhares de católicos, umbandistas que comparecem à igreja de São Gonçalo e Garcia na Praça da República.
O bispo passou a transmitir seus descontentamentos na rádio e na imprensa carioca, sendo essa acusada de “servas do papa” pelos umbandistas. Decidiu pôr fim, realizar uma missa campal na área do aterro, que interferisse com mudanças de horários a devoção popular, tentando “higienizar” com seu discurso racial os sincretismos que tanto que causaram descontentamento, em especial na impossibilidade de se distinguir práticas religiosas, grupos e classes sociais na devoção à deusa yorubana.
José Alvares Pessoa, escreveu o texto “O milagre de Iemanjá” no jornal de umbanda de fevereiro de 1955, mostrando o conflito aberto entre os umbandistas e os católicos, em especial sobre “o desespero” de Dom Jaime de Barros Câmara “em dar um golpe no culto a Iemanjá, que se celebra todos os anos — desde tempos imemoriais — no Rio de Janeiro e que, transpondo, seus limites, já se propagou por todos o país”.
O tal golpe foi a mudança da missa católica realizada sempre às tardes, para a meia-noite na virada do dia 31 de dezembro de 1954 para 1 de janeiro de 1955 com uma pomposa procissão de 300 barcos vindos de Niterói, que chegariam no aterro da esplanada do Castelo para realização de missa campal. Porém como afirma a matéria que diante de artimanha política dos católicos orquestrada por Dom Jaime, os umbandistas pediram que Iemanjá lhe “mostrasse o seu poder”. A deusa trouxe tanta chuva, que impossibilitou a realização do evento, sendo o mesmo transferido pelo cardeal para 20 de janeiro. Mas o mais importante foi que o ano novo foi preservado e novamente as praias lotadas de gentes em transe e muitas flores, bonecas, espelhos e todos os tipos de oferendas a Iemanjá.
Os ataques dos católicos aos umbandistas e demais segmentos afro não cessaram, e muitos continuaram, mesmo após o Concilio Vaticano II (realizado em 1962), como é o caso do bispo de Niterói, numa matéria do Jornal O Fluminense de 21 de dezembro de 1966, assombrado com a circulação de pessoas, em especial dos católicos que saiam das missas para as praias. Ele chamou o culto de “pagão”, e que os umbandistas que chamavam “Nossa Senhora da Conceição de “deusa do mar” era um modo de enganar os católicos, uma “manobra” para atrai-los para aqueles atos.
Maiores detalhes sobre esse e outros episódios de intolerância religiosa:
Bahia, Joana D`Arc do Valle. O Rio de Iemanjá. Um olhar sobre a cidade e a devoção Rio de Janeiro: Telha, 2023
Informações sobre o bispo Dom Jaime de Barros Câmara disponível em: <http:// www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/jaime-de-barros-camara>. Acesso em: 10 out. 2021.
Joana Bahia
Professora titular da UERJ. Coordenadora do Nuer (Núcleo de estudos da religião). Autora do livro O Rio de Iemanjá: um olhar sobre a cidade e a devoção, publicado pela editora telha em 2023 e vários artigos sobre religiões afro brasileiras, em especial Omoloco, umbanda, candomblés, Iemanjá e expansão das religiões afro brasileiras no mundo... [+ informações de Joana Bahia]
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