Por: Pai Sid
08/09/2023 | 16:01
O mês do Senhor da Terra findou, período que falamos de cura, vida e morte e estamos no início do também bonito Setembro onde a maioria de nós se volta atentos para os Ibejadas ou como muitos de nós saudamos sincretizados, Cosme e Damião, os gêmeos médicos que curavam sem cobrar por isso e são padroeiros também dos médicos e farmacêuticos. Assim não poderia falar aqui de outro assunto que não fosse a saúde e vida!
A resolução 715 do Conselho Nacional de Saúde de 20 de Julho deste ano destacou a importância das religiões afro brasileiras como complementares ao trabalho realizado pelo SUS. Pela importância desse reconhecimento, do Sistema Único de Saúde e dos terreiros, deixo aqui no início dessa escrita o item 46 das orientações estratégicas para o Plano Plurianual e para o Plano Nacional de Saúde, aprovadas pelo CNS:
“… (Re)conhecer as manifestações da cultura popular dos povos tradicionais de matriz africana e as Unidades Territoriais Tradicionais de Matriz Africana (terreiros, terreiras, barracões, casas de religião, etc.) como equipamentos promotores de saúde e cura complementares do SUS, no processo de promoção da saúde e 1ª porta de entrada para os que mais precisavam e de espaço de cura para o desequilíbrio mental, psíquico, social, alimentar e com isso respeitar as complexidades inerentes às culturas e povos tradicionais de matriz africana, na busca da preservação, instrumentos esses previstos na política de saúde pública, combate ao racismo, à violação de direitos, à discriminação religiosa, dentre outras.”
Essas orientações aprovadas em várias reuniões e conferências são sugestivas e não têm força de lei, precisam ser amplamente analisadas pelo Ministério da Saúde e então aprovadas para que se tornem políticas públicas de fato. Mas é óbvio que nos mostra a importância dos movimentos sociais, da escuta popular e das ações políticas dos povos de terreiro norteando o poder público na construção de políticas que também nos contemplem.
Não é novidade para nós que nossas casas ou barracões são locais de promoção de saúde, que tudo que é feito dentro de nossos espaços é sim elemento de cura e de (re)conexão com o sagrado. Nunca foi propósito de pais e mães de terreiro substituir o “roupa-branca” ou as “bolinhas” ministradas pelos médicos e muitos destes por sua vez, reconhecem a importância dos terreiros e suas praticas como complementares ao tratamento convencional.
São várias as chamadas “PICS” ou Práticas Integrativas e Complementares de Saúde que já utilizam a Ayurveda, a Shantala, o Reiki, a Medicina Tradicional Chinesa entre outros recursos terapêuticos que buscam a recuperação da saúde ou a prevenção de doenças. Reconhecer os passes do preto velho, os bate-folhas, chás e banhos, os pontos e cantigas, a comida de santo, a gira e tudo que há nos terreiros como ferramenta de promoção de saúde não é favor, é reparação e respeito a nossa cultura.
E se temos tantas praticas de saúde presentes em nosso terreiro que não dialogam e nem preservam nossa identidade e cultura, ou se temos tantas pessoas fora de uma vida plena em ancestralidade, fora de comunidades tradicionais ou aldeias vendendo saberes ancestrais, enganando incautos com curas suspeitas baseadas em energias de troca e comercializando o que é sagrado, só mostra o quão racista e excludente é nosso país. Atitudes que matam aos poucos os nossos mortos e nossas comunidades.
Somos nós povo de terreiro que devemos seguir atentos para os que chegam em nossos espaços, para o que é ofertado em nosso território e se isso é coerente com a verdade ancestral que carregamos pois é essa verdade que garante a saúde de nosso território e de nossas lideranças.
Nossas casas repeitaram o silêncio necessário durante o período da Covid e no retorno às atividades vimos o quanto as pessoas buscavam a saúde do espírito, o quanto ainda hoje há uma sede de viver. A nova pandemia agora é de Saúde Mental ou melhor dizendo, de Sofrimento Mental com o aumento de casos de depressão e ansiedade entre outros, e temos o nosso país liderando o ranking de jovens e crianças que sofrem com questões ligadas a autoestima, o não saber o que fazer com a vida... Precisamos nos atentar para o que é e deve ser tratado de modo profissional e medicamentoso e para o que compete ao Sagrado.
Nosso remédio vem das mujingas, dos sakulupembas, da pipoca e dendê, das balas e doces que alegram a palavra, das danças e cantigas, das folhas que fortalecem nosso corpoespirito, nosso mutuê!
O nosso conceito de saúde e adoecimento é muito mais amplo do que a visão que nos foi imposta pelo colonizador, sabemos que o distanciamento de nossa ancestralidade e da natureza é o que abre a porta para a doença. Sabemos também que há muitos doentes na visão acadêmica de médicos e doutores que estão plenos de vida e saudáveis na fé e outros tantos esbanjando vitalidade e adoecidos na emoção, esvaziados da fortaleza balizadora vinda dos nossos bakulos.
Quantos vivos que perderam o brilho no olhar e estão mais mortos que nossos mortos pois abriram mão do propósito, se apartando do que amplia em nós o ngunzo dado por N’Zambi? Se tu é a força vital, a partícula divina que está presente em tudo que há e é elemento primordial para a vida, muntu ou omuntu é aquele que tem cabeça, o mutuê, a sabedoria para fazer bom uso dessa força vital. É no mutuê que reside a saúde!
Somos a divindade, um pequeno sol vivo para iluminar nossa comunidade e os nossos. Porém esse mutuê precisa se nutrir constantemente dessa partícula para que estejamos sempre em plenitude, precisamos estar receptivos para isso entendendo que nosso mutuê está e deve estar diretamente ligado ao Kanda Muntú ou a cabeça da nossa comunidade através dos ensinos e dos exemplos dos nossos ngangas, nossos pais e mães. É preciso estar disponível para viver o que a sua comunidade espera e necessita, alimentá-la com a sua força, ela saudável é você saudável.
É preciso zelar pelo sol em nós, em nossas crianças e mais velhos, é preciso nutrir o camutuê com a alegria e o riso das crianças, com a palavra curadora dos mais velhos, que é remédio para o muxima. Honrar aquilo que acreditamos para que o Luvemba não chegue em nós antes do Tempo, para que não apressemos nossa partida, porque saúde de verdade para nós de terreiro é estar pleno em todos os lugares e em tudo que fizermos.
Quando a morte finalmente chegar, que ela te encontre vivo!
Pai Sid
Pai Sid Soares é pai pequeno do CENSG - Centro Espírita Nossa Senhora da Guia em Volta Redonda RJ. Co-presidente da Comissão de Terreiros Mojuba, no Sul Fluminense que realiza um trabalho de fomento das políticas públicas para o povo de santo. [+ informações de Pai Sid]
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