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Machismo: desincorpore essa prática!

Por: Ademir Barbosa Junior

03/05/2023 | 15:36


Apesar da rede de proteção e seu histórico de inclusão a marginalizados (as) e excluídos (as), as religiões de terreiro não estão isentas do machismo e do patriarcalismo. Abuso, assédio, violência de toda sorte: nossas comunidades-terreiro, embora em menor escala em relação à “sociedade em geral”, reproduz e perpetua diversas formas de desrespeito e violência contra a mulher (cis, bi, trans etc.). Algumas dessas formas são silenciosas e subterrâneas, nem por isso menos importantes (e deletérias). Decolonizar nossas crenças e posturas é um processo tão cotidiano quanto vivenciar a espiritualidade ancestral. Portanto, vamos observar algumas ocorrências que, por vezes, passam despercebidas.


1. Uma mãe pede auxílio para si e sua família. Recebe alimentos e orientação sobre seus direitos jurídicos e de suas crianças, encaminhamentos diversos etc. Ao final do contato, diz ao Pai do terreiro que apagará as conversas e o contato, pois o “marido”, embora tenha saído de casa, é muito ciumento. O Pai do terreiro concorda, mas comenta, depois que “se o marido tem ciúmes, é porque alguma coisa ela aprontou”.



2. Segundo o cartaz acima, somente mulheres usam roupas inadequadas para ir ao terreiro. Onde estão as regatas machão, os shorts curtos de “corte masculino”, as calças “masculinas” que sufocam o saco escrotal, os cropped usados tanto por homens homo e bi quanto, há pouco tempo, também pelos hétero? Em tempo: as roupas adequadas ao terreiro são as mais harmoniosas para os propósitos dos rituais, não condenam o corpo nem o demonizam, e isso também deve ser contextualizado.


3. Liturgicamente, é consenso se utilizar do fumo e de bebidas alcoólicas para Aborôs (Orixás de energia masculina), mas os mesmos, em muitos terreiros, são vedados às Iabás (Orixás de energia feminina) sem qualquer justificativa, a não ser a inconsciente reprodução do conceito de que “mulher fumar e beber é feio”. Além da reprodução (geralmente, repito, inconsciente) do preconceito, essa postura ignora as reais funções litúrgicas e energético-espirituais do fumo e do álcool.


4. A Mãe do terreiro dá um recado, mas o mesmo precisa ser confirmado por um membro masculino da comunidade, como um Pai Pequeno ou Ogã, de modo a desvalidar a fala e a autoridade da Mãe ou de outro membro feminino do terreiro.


A riquíssima mitologia dos Orixás nos auxilia a ter consciência dessas posturas e a revertê-las no cotidiana. Nesse sentido, por exemplo, Xangô representa o amadurecimento do masculino. Decepcionou Euá, que passou a viver solitária, nos cemitérios; não lida bem com as rusgas com as esposas, sobretudo Oxum e Obá (Iansã, com energia mais afim a Xangô, geralmente estava à margem dessas rusgas); tentou violentar a mãe adotiva, Iemanjá, e Nanã, a esposa mais velha de Oxalá. Enfim, são muitos relatos. Num deles, Xangô finalmente parece aprender algo com o feminino:


Xangô fugia de inimigos e foi se esconder na casa de Iansã.

Caso fosse pego, perderia a cabeça.

Iansã o ajudou com um estratagema: vestiu Xangô as roupas dela, cortou o próprio cabelo e cobriu a cabeça do amado. Enfeitou-o, ainda, como se fosse ela.

Iansã anunciou que sairia e, quando o fez, foi muito admirada por todos. Na verdade, era Xangô disfarçado.

Quando os inimigos entenderam o que havia acontecido, já era tarde: Xangô estava salvo.

O masculino travestido de feminino, no relato acima, pode ser lido como o ato de colocar-se no lugar do outro, com vistas à compreensão de seu oposto complementar. Ao se vestir como Iansã (a esposa com quem mais Xangô apresenta compatibilidade de elementos, pois com ela divide os domínios do fogo,do raio e do trovão, ao mesmo tempo em que a ela se opõe, pois Xangô é Orixá que pulsa tão intensamente a vida, que repulsa o mundo dos mortos, reino em que Iansã se sente à vontade), Xangô, por meio da representação do feminino, reforça o seu masculino, de modo equilibrado e maduro. Assim, não perde sua cabeça (seu Orí, sua consciência) e não se deixa vencer pelos inimigos (instintos, temores, inconsciência). Como na imagem da balança da justiça, domínio de Xangô, os pratos assumem posições equânimes ou com oscilações compreensíveis rumo ao equilíbrio.[1]

[1] BARBOSA JR., Ademir. O livro de ouro dos Orixás. São Paulo: Anúbis, 2017, pp. 25-26.



Por fim, “Mulher de Malandro” na espiritualidade dos terreiros, vale lembrar, não é a que aceita violências e abusos, mas é também Malandra, que, com seus gingados, dribla os desmandos do status quo; com sua navalha, rompe barreiras e interditos; com sua fala sincera e direta, embota, desbota e arranca as máscaras de bom-mocismo do patriarcado.


Malandro se na minha cara der

Pode fazer testamento e se despedir da mulher

Malandro se na minha cara der

Pode fazer testamento e se despedir da mulher


Se tiver filho deixa uma recordação

Cara que mamãe beijou vagabundo nenhum põe a mão

Se tiver filho deixa uma recordação

Cara que mamãe beijou vagabundo nenhum põe a mão


Dentro ou fora do terreiro, machismo: desincorpore essa prática!





Ademir Barbosa Junior - AxéNews

Ademir Barbosa Junior

Ademir Barbosa Júnior (Pai Dermes de Xangô) é dirigente da Tenda de Umbanda Caboclo Jiboia e Zé Pelintra das Almas (Piracicaba – SP), fundada em 23/4/2015. É Doutorando em Comunicação pela UNIP (Bolsa PROSUP/CAPES) e Mestre em Literatura Brasileira pela USP, onde se graduou em Letras. Pós-graduado em Ciências da Religião pelo Instituto Prominas, é professor e terapeuta holístico. [+ informações de Ademir Barbosa Junior]

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