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Mulheres pretas de ontem e hoje: um legado da ancestralidade de práticas e saberes

Por: Mãe Lelê

Foto: Tânia Rêgo/ Agência Brasil

10/03/2023 | 18:32


Deixando de lado as controvérsias a respeito das origens de o dia 08 de março ter sido escolhido para prestar honrarias às mulheres, penso que esta data - para além de uma celebração pontual - deva servir para que redimensionemos o nosso olhar diário para as diversas, complexas e múltiplas questões inerentes à vida da mulher e às condições de sua existência e sobrevivência no Brasil. Isto requer uma ampla reflexão e discussão acerca do tema para que nós, enquanto sociedade civil organizada, tenhamos a possibilidade de coletivamente, construirmos caminhos que resultem em políticas públicas eficazes em favor da mulher.



Podemos destacar para as questões apontadas acima as subjulgações; o desrespeito e os assédios morais nos espaços públicos; a não paridade dos salários em relação aos homens; o percentual inferior de mulheres em todos os cargos na política e nos espaços de poder; os abusos sexuais; as violências físicas e psicológicas; a violência doméstica; a gravidez na adolescência; a pobreza menstrual; a prostituição, o turismo sexual; as doenças sexualmente transmissíveis; o fato de ser mãe solo; o etarismo; a pressão por um padrão estético; a gordofobia; o estupro; a morte por abortos clandestinos, o feminicídio; a homofobia; a transfobia; o racismo; o racismo religioso etc. A lista, infelizmente, é muito grande.


Ao lermos os problemas anteriormente citados, deixando que cada palavra ou expressões ali colocadas ressoem alto em nosso cérebro, fazendo eco em nossos ouvidos, é impossível não ficarmos impactados, não nos deixarmos abater por um turbilhão de sentimentos que nos causam desconforto e dor. E tudo isso ganha maiores dimensões, quando fazemos um recorte, tendo em vista a cor da pele preta das mulheres - já que “ a carne mais barata no mercado é a carne negra /na cara dura, só cego que não vê”, cantada magistralmente pela preta Elza Soras - e a condição de existência de vida, ou seja, a questão identitária, ou mais especificamente: o fato de ser lésbica, bissexual, travesti ou transexual. Aí o horror instala-se. Assim sendo, abordar a temática da mulher a partir da perspectiva da mulher preta, torna-se imprescindível no momento atual em que o feminicídio, a homofobia, a transfobia e crimes de racismo estrutural e religioso têm sido cada vez mais recorrentes, atingindo índices alarmantes.


Sendo uma sacerdotisa de Umbanda, antes de prosseguir com esta escrita acerca da mulher preta e a sua interligação com as religiões de matrizes africanas, não posso deixar de saudar e pedir permissão - tal como fizeram as minhas antepassadas negras assim que chegaram escravizadas em solo brasileiro - às verdadeiras donas do chão em que pisamos hoje: as mulheres indígenas das mais diversas etnias. Mulheres que tiveram seus destinos manchados de sangue em decorrência da brutal violência do processo de colonização, ou mais especificamente, de invasão do nosso país. Infelizmente, esta mácula não ficou apenas no passado. Ainda hoje, século XXI, as mulheres indígenas continuam sofrendo abusos e sendo tratadas como não humanas. Cabe aqui mencionar as recentes ações criminosas ocorridas nas aldeias dos Yanomamis (que significa “seres humanos”) em que meninas, adolescentes e mulheres desse grupo foram aliciadas e abusadas sexualmente por garimpeiros, que de forma ilegal exercem a prática do garimpo nesses territórios, em troca de bebidas, comidas e outros tipos de serviços.


A contribuição e o ensinamento que recebemos das diversas etnias indígenas atravessam a nossa fala, os nossos costumes e estão enraizados nas práticas ritualísticas de Umbanda. Um exemplo bem simples disto é a palavra caboclo (cariboca: kari'boka – caboclo) que nomeia uma das linhas de Umbanda, em que as entidades denominadas caboclos / caboclas, quando “baixam” no terreiro, bebem as suas bebidas em um coité (palavra de origem Tupi que significa vasilha; é uma cuia de coco )e fazem uso das ervas frescas e/ou secas para defumadores, banhos e amacis (ervas maceradas para serem colocadas na cabeça). Apenas a título de curiosidade, listo outras palavras de origem indígena: curumim, cipó, Iracema, jurubeba, mandioca, oca, pajé, paçoca, pipoca, tiririca, sucuri, tupã, tupi, Yara. No entanto, o que é imprescindível destacar aqui é o fato de que foram as constantes trocas de saberes, entre indígenas e mulheres pretas escravizadas, acerca das erva e plantas medicinais, das informações sobre a mãe-terra, das práticas terapêuticas, das benzeduras e outras formas de cuidado e sobrevivência, que ajudaram ao povo preto cuidar da saúde para combater as doenças causadas pelas más condições de higiene, pela precária alimentação e pelas feridas abertas causadas pelas chibatadas nos corpos pretos. E é esse saber aprendido oralmente que será transmitido da mesma forma, oral, aos pertencentes de terreiro comandados pelas mulheres pretas mãe de santo.


Nas sessões de Caboclo de Umbanda, àquelas destemidas, valentes e guerreiras mulheres indígenas corporificam-se através do transe em seus médiuns, ressoam alto os seus brados, quando evocadas pelo rufar dos tambores. Elas giram, andam em círculos, lançam suas flechas no ar e perfumam o terreiro com o cheiro das ervas da Jurema. Assim sendo, peço as bênçãos e a proteção das Caboclas de Umbanda para as mulheres Yanomamis, bem como para todas as mulheres. Bênçãos Cabocla Jurema, Jupira, Jandira, Jussara, Iracema, Iara, Potira...


Falar de mulher preta é também fazer reverências e rogar as bênçãos das nossas divindades pretas. Pretas, sim! Reitero isso para as pessoas que, mesmo dizendo serem umbandistas, insistem em negar tal fato, apoiando-se em um discurso nitidamente racista de que Orixá não tem cor por ser energia. Inquice, Vodum, Orixá têm sua origem no povo preto. Quando os negros foram arrancados de suas regiões na África, trouxeram consigo suas divindades ancestrais familiares. Aqui, o culto foi ressignificado e reorganizado, ganhando nova configuração. E será a mulher preta a quem caberá a exclusiva tarefa de conduzir as práticas religiosas sagradas às divindades. Dentre essas divindades, estão as Iabás – mães rainhas- que também são honradas na Umbanda. São elas: Nanã, Iemanjá, Iansã e Oxum. Para nós mulheres pretas, cada uma dessas poderosas mães ancestrais representa uma das faces da resistência e luta contra a escravidão, opressão, o machismo e a violência em geral.


Se no passado coube à mulher preta, aqui no nosso país, a importante tarefa de ser a gestora e cuidadora das tradições sagradas da nossa prática religiosa de reverenciar as divindades pretas, cabe aqui perguntar: onde estão elas hoje? Os terreiros de Umbanda que são oriundos das “macumbas cariocas”, hoje, ainda têm as suas mães pretas que ensinam no chão do terreiro as rezas, as benzeduras, os unguentos... (Deixo aqui uma lacuna para os que leem este texto respondam).


Então, bênçãos a preta anciã Nanã que carrega junto ao peso de sua idade a sabedoria. É por isso que nós, de terreiro, nos curvamos diante das nossas mais velhas em atitude respeitosa de reconhecimento. Bênção a preta gorda e peituda Iemanjá (mulher cujos filhos são peixes) que nos alimenta em seus seios fartos, que nos mostra os caminhos da vida, educando-nos para explorarmos as nossas potencialidades; ela é a grande mãe! Bênçãos a preta Iansã, mulher guerreira com vento nos pés que, mesmo tendo que cuidar dos seus nove filhos, ia para guerra ao lado de Xangô; mulher capaz de virar búfalo e usar dessa força para fazer-se respeitar. Bênçãos a preta Oxum, mulher cujo brilho das joias nos faz lembrar o necessário cuidado para conosco, mulheres pretas; é ela quem mostra o poder da mulher em gerar e abrigar no seu corpo um outro ser; ou seja, alerta aos homens a importância do feminino em uma sociedade. Afinal, o homem só vem à Terra passando pelo ventre de uma mulher.


Como também não saudar e pedir bênçãos as nossas amadas e queridas pretas-velhas de Umbanda ao falar de mulher preta? São estas entidades que evocam em nós a memória ancestral do nosso povo negro. Elas nos fazem voltar no tempo, nos ensinam que as mulheres pretas de Angola, antes de virem para cá escravizadas, trabalhavam na terra, participavam de feiras trocando, vendendo seus próprios produtos e obtendo lucros significativos para seu sustento; eram rainhas, princesas, tinham posição de destaque no exercício do poder civil e na guerra. Enquanto que as mulheres iorubás eram grandes negociantes nos mercados, eram donas de seus próprios comércios, eram guerreiras, tinham postos de comandos, fiscalizavam o funcionamento do Estado e fundaram associações femininas importantes: Ialodê( troca de bens públicos) e Geledés ( troca de bem simbólicos).


Através da figura das pretas-velhas, direcionamos nosso olhar para o percurso da mulher preta escravizada da infância à velhice: são negrinhas amas-secas, cozinheiras, arrumadeiras, quituteiras, amas de leite, escravas de ganho, benzedeiras, curandeiras.. Mas foram também líderes de movimentos de revoltas e levantes de escravos, ativistas políticas, líderes quilombolas, advogadas e informantes em favor das causas abolicionistas.


As pretas-velhas de Umbanda sempre foram e são as escutas, as analistas das enfermidades psíquicas, as curandeiras das dores da alma e das feridas abertas no corpo da mulher preta. Quando “baixam” nos terreiros de Umbanda e sentam em seus banquinhos toscos, salvam vidas! É no colo da preta-velha que a mulher preta chora o fato de ser mãe solo ou de não ter o quê dar de comer aos filhos. São as pretas-velhas que, com seus galhinhos de arrudas e com a fumaça de seus cachimbos descarregam as nossas mazelas, quebram quebrantos, tiram o mau olhado nos benzendo de frente e de costas, dizendo: “se com dois te botaram, com três será tirado”. Por isso, salve Vovó Catarina, Vovó Rosa, Vovó Luiza, Vovó Cambina, Vovó Maria, Vovó Maria Redonda, Vovó Engrácia, Vovó Joana... seja do Congo, de Angola, da Costa da Mina, da Guiné, de Benguela, da Bahia, da calunga...


E, por fim, também saudar, pedir licença e bênçãos a Elas, as Comadres Pombagiras. Entidade mulher tão mal compreendida até mesmo dentro dos terreiros de Umbanda. As Pombagiras trazem consigo a liberdade das amarras da sociedade patriarcal. Quando chegam ao terreiro, gargalham, fumam seus cigarros, bebem seus licores ou champanhes, demonstrando, assim, a ousadia necessária em transgredir. Além disso, enfeitam-se com brincos, pulseiras e colares, põem no cabelo uma rosa, suspendem as saias até os quadris, dançam e giram em volta de si mesmas, demonstrando total domínio do corpo que ali se apresenta a fim de desvelar para nós o poder, a força e a feminilidade contida na essência mulher. Enfim, são senhoras delas mesmas, donas de seus próprios caminhos.


Reverenciar a Pombagira, portanto, é aproximá-la da realidade das mulheres pretas, atentando, principalmente, para a questão de gênero. Mulheres lésbicas, travestis e transexuais precisam de forma redobrada de cuidados, proteção, afeto, autoestima, estímulo e coragem para superarem as violências físicas e psicológicas, as perseguições, os abusos, as explorações, o desrespeito, o problema da empregabilidade, os medos, as inseguranças e tantos outros problemas que obstruem o caminho delas para a liberdade de ser mulher e para o direito ao pleno exercício da cidadania. Torna-se urgente que os espaços de terreiros de Umbanda e Candomblé revejam suas atitudes e NÂO reproduzam as práticas desumanas de inviabilizar, oprimir, desrespeitar e discriminar essas mulheres.


“Arreda homem que aí vem mulher”!! Saravá Maria Padilha, Maria Molambo, Maria Farrapo, Maria Quitéria, Maria Poeira, Maceió, Sete saias, Rosa Caveira, Dama da noite, Rainha das 7 Encruzilhadas, Pombagira da Figueira, Pombagira Menina, Pombagira Cigana...


Por tudo que já foi dito até aqui, fica evidente que no Brasil os desafios a serem vencidos pela mulher preta, ao longo da nossa história, sempre foram extremamente difíceis. As nossas trajetórias foram e são marcadas sempre por obstáculos racistas e excludentes que, em geral, são naturalizados na e pela sociedade. Entretanto, é necessário ter sempre em mente que a nossa história não começa nos porões dos navios negreiros do século XV. A nossa história vem de tempos imemoriais, como nos diz a professora doutora em filosofia africana, Katiúsca Ribeiro. Somos descendentes de reis e rainhas africanos, de mulheres que lideraram exércitos, de grandes sacerdotisas, de cientistas... Precisamos, portanto, entender e valorizar a trajetória do nosso povo preto, reconfigurá-la e seguirmos nos impondo em cada espaço ocupado. Além disso, é preciso reverberar as vozes, mostrar ações e divulgar as conquistas das mulheres pretas que abrem caminhos para todas as outras seguirem adiante.


Prestemos, então, nossas homenagens e reverências com sentimentos de profunda gratidão às mulheres negras que já estão no Orum e que viraram ancestrais por terem aberto caminhos para outras irmãs pretas: Rainha Nzinga, Luísa Mahin, Teresa de Benguela, Aqualtune, Maria Felipa, Zacimba Gaba, Adelina ( a charuteira), Esperança Garcia, Tia Ciata, Mãe Fê, Mãe Aninha, Mãe Menininha do Gantois, Antonieta de Barros, Clementina de Jesus, Carolina Maria de Jesus, Lélia Gonzalez, Profª Maria Beatriz Nascimento, Makota Valdina, Mãe Stella de Oxóssi, Mãe Beata de Iemanjá, Ruth de Souza, Chica Xavier, |Marielle Franco, Elza Soares, Drª Ângela Maria da Costa e Silva Coutinho, Glória Maria...


Para as que estão aqui no Aiê e prosseguem a luta bravamente, para que construamos futuros melhores para todas e todes, o meu profundo respeito, gratidão e solidariedade para que continuemos caminhando e conquistando mais e mais a cada dia. Obrigada, Aída dos Santos ( atleta), Drª Helena Theodoro , Drª Sueli Carneiro, Drª Conceição Evaristo, Drª Djamila Ribeiro, Drª Renata Souza, Profª Drª Bárbara Carine, Drª Carla Akotirene Santos, Elisa Lucinda ( atriz e escritora), Léa Garcia ( atriz), Taís Araújo ( Atriz), Teresa Cristina ( cantora), Drª Silvia Souza, Drª Jaqueline Góes de Jesus, Luana Xavier( atriz), Zezé Mota (atriz),Alcione (cantora), Drª Kisiuam de Oliveira, Mãe Márcia Marçal, Mãe Meninazinha de Oxum, Mãe Flávia Pinto, Ministra Anielle Franco, Deputada Leci |Brandão, Deputada Benedita da Silva, Deputada Verônica Lima, Profª Thaisa Menezes Vereadora Benny Briolly, Liniker ( cantora), Linn da Quebrada, Drª Lais Meri Quirino Gonçalves, Profª Tatiana da Costa e Silva Pereira Siqueira, Profª Thaiana Ivia da Costa e Silva Pereira ...


E para as meninas que estão crescendo, já vão pegando o bastão: Maria Ivia, Rafaele Zuri...


Referências:

ADICHE, C. N. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

BERNARDO, T. Negras, Mulheres & Mães: lembranças de Olga de Alaketu. São Paulo: Arole Cultural, 2019.

DJAMILA RIBEIRO. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.aulo: Arole Cultural, 2019.

CUMINO, A. Pombagira, a deusa: mulher igual a você. São Paulo: Madras, 2019.

LIMA, V. Cultos afro-paraibanos: Jurema, Umbanda e Candomblé. Rio de Janeiro: Fundamentos de Axé, 2020.




Yatemy Regina de Tobossy - AxéNews

Mãe Lelê

Mãe Lelê, Leizimar G. da Costa e Silva, está na Umbanda há mais de 50 anos. Foi consagrada como sacerdotisa de Umbanda no dia 23 de abril de 2011 no Centro Espírita São Jorge de Ronda, fundado em 1975 por sua mãe carnal, D. Lais, e também sua mãe na Umbanda. E sendo assim, valoriza o lugar de onde veio; lugar onde construiu a sua identidade e aprendeu a viver e a conviver com o sagrado de forma respeitosa e livre. [+ informações de Mãe Lelê]


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