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Nascida para conceber a felicidade

Por: Jeaney Calabria

10/12/2022 | 00:00


Na certidão de nascimento, o nome Maria da Conceição. Filha de um

homem que escolheu não ser pai e de uma mulher, Aparecida, que na solidão

do criar, decidiu pela coragem de parir. A Oficial de Cartório tentou fazer com

que a jovem mãe trocasse o nome da recém-nascida.

- Por que não escolhe outro nome?

- E por qual motivo eu deveria dar outro nome à minha filha?

- Maria é um nome que está ligado sempre ao sofrimento...

A jovem mãe respondeu com firmeza:

- E a senhora já viu quantas outras mulheres que não são “Marias”

sofrem todos os dias com o descaso da sociedade, dos homens e de outras

mulheres?

O registro civil foi concluído e Maria saiu feliz com a filha nos braços. No

ponto de ônibus, sob o sol quente de dezembro, esqueceu as recomendações

médicas de resguardo e decidiu ir direto para o terreiro. Sussurrou para Maria

da Conceição.

- Vamos encontrar nossa gente. Lá você terá uma família grande, muitos

pais, outras mães e todos os irmãos que quiser.

O ônibus se aproximava e ela esticou o braço para fazer sinal. O

motorista parou alguns metros à frente. Com dificuldade, ela caminhou e subiu

os degraus do coletivo. Pagou a passagem, passou pela roleta e acomodou-se

num assento individual. O choro da bebê fez com que ela puxasse o seio para

amamentá-la. Uma senhora sentada no banco de trás, balançou a cabeça em

reprovação. O homem que estava sentado ao lado da senhora resmungou:

- Depois não querem ser violentadas! Não respeitam ninguém! Isso não

é lugar pra pôr os peitos de fora!

Ela teve ímpetos de reagir, mas logo desistiu. Sabia que teria muitas

outras batalhas pela frente junto à filha e precisava ganhar forças para isso.

Fechou os olhos e pediu proteção à Mãe Iansã.

Após longa e cansativa viagem no ônibus sucateado, ela levantou com

certa dificuldade e puxou a cordinha do sinal de parada. O motorista

esbravejou:

- Vai saltar nesse meio do nada mesmo? Não tem responsabilidade

nenhuma, né, moça?

- Pode parar aqui mesmo, motorista, por favor. É esse o lugar...

O homem sentado ao lado da senhora gritou:

- Depois não reclama se for estuprada! Vocês procuram e acabam

achando!

Aparecida, a mãe, sentiu uma lágrima escorrer discreta pelo lado

esquerdo do rosto. Sentia o coração doído, machucado. Sentia medo pelo

mundo que a filha iria enfrentar. Decidida em não desistir, seguiu com passos

firmes. Após caminhar pouco mais de dois quilômetros, avistou seu oásis

pessoal: o terreiro de Mãe Mercedes. Bateu à porta e esperou ansiosa.

José de Xangô, irmão de barco de Maria, abriu a porta e enfeitou o

próprio rosto com um largo sorriso.

- Maria! Por que não avisou que viria? Eu poderia apanhar você... Me dá

aqui essa lindeza!

José segurou a menina e chorou.

- Como você é corajosa, minha irmã!

- Sou nada, José! Sou covarde demais... A vida me põe medo. As

pessoas me põem medo...

Ela apanhou a quartinha de barro e jogou a água na rua. Entrou e

dirigiu-se ao irmão.

- Será que consigo uma roupa branca emprestada? Só trouxe as coisas

de Maria da Conceição.

Mãe Mercedes ouviu a voz da filha de santo e apressou-se em separar

um conjunto branco para entregar a ela. Sorridente e com os braços abertos e

receptivos caminhou em direção à filha.

- Nesta casa, tudo pertence a vocês! Como estou feliz com seu retorno!

E nada de medo da vida e das pessoas, minha filha! Onde já se viu uma

mulher de Iansã ter medo de alguma coisa? Orixá é por você e sempre será!

- Perdi tudo, mãe... Casa, trabalho...Tudo!

- Sua casa é aqui e o trabalho vai aparecer na hora certa! Agora, vá

tomar seu banho e se aprumar, levantar a cabeça para seguir em frente!

(........)


Maria da Conceição estava prestes a completar cinco anos de idade. O

terreiro estava com dois Ìyáwó recolhidos. A festa da menina seria a saída dos

novos iniciados do axé. José havia assumido o amor por Cida e os dois

casaram-se numa cerimônia simples comandada por Mãe Mercedes. A

pequena e unida família decidiu morar no terreiro e, sob os olhos da

paternidade de José e dos demais participantes da casa, a filha de Cida crescia

forte, determinada e zelosa. Gostava de brincar com o adjá sentada imponente

na cadeira da Mãe de Santo.

A noite já havia caído e todos se preparavam para o início da

festividade. Maria da Conceição estava com um vestidinho branco e os cabelos

crespos enfeitados por tranças. Cida viu a filha olhar fixamente em direção à

cadeira de Mercedes.

- O que foi, Maria da Conceição?

A menina sacudiu a cabeça tentando se livrar daquela fixação.

- Nada, mamãe. Mas acho que vai acontecer alguma coisa muito

importante hoje.

José olhou para ela com alegria e o sorriso costumeiro.

- Claro que vai, minha filha. Todos os dias acontecem coisas importantes

numa casa de candomblé!

- Não é só isso, papai...

Mercedes entrou no salão à frente dos filhos e deu início ao xirê. Os

Ogãs entoavam as cantigas de Orixá e os aguidavis voavam. Exu, Ogum,

Oxóssi... Até que, ao primeiro toque do Ijexá, Mercedes foi tomada pela energia

de Oxum. Dançando graciosamente, a deusa dourada encaminhou-se até

Maria da Conceição, abaixou-se e prostou-se diante da menina. Abraçada a

ela, conduziu-a até a Cadeira Sagrada e colocou-a sentada. Imediatamente,

todos os Orixás da casa se apresentaram, reconhecendo o cargo recebido pela

pequena. Cida e José, tomados pela emoção do momento, deixaram lágrimas

abundantes escorrem pelo rosto, mesmo com a manifestação de Iansã e

Xangô.


Ouviu-se o badalar de sinos da Igreja que ficava próxima ao terreiro. Era

dia de festa também na Irmandade Católica. Dia de Nossa Senhora da

Conceição. Maria chorava de emoção. Recebera o maior presente de

aniversário da vida. Cuidaria de quem sempre havia cuidado dela: a Força

Sagrada de Oxum e de Orixá. Esticou o braço franzino e fez um pedido com o

olhar a uma Ekedy mais velha. De imediato, recebeu uma toalha bordada.

Levantou cuidadosamente as pérolas que pendiam do adê de Oxum e secou o

suor do rosto de Mãe Mercedes, o suor de Oxum...


A pequena ajoiê, a que recebera o nome de Maria da Conceição, ouviu a

última badalada do sino festivo. Ela era Maria, mas, contrariando a Oficial do

Cartório onde foi registrada, nasceu para ser feliz! Nasceu para conceber a

felicidade.


Jeaney Calabria

Formada em Letras pela UERJ e Jornalismo pela UNISUAM, com especialização em Neurolinguística, atuei em unidades escolares públicas e privadas por mais de três décadas.

Publiquei o livro Passando o mouse na etiqueta em 2010, com narrativas curtas voltadas para o público adolescente. O romance ditado por Exu Veludo - Capa de Veludo - foi lançado em 2012. Participei da revisão e elaboração do livro Candomblé em Família, do Babalorixá Jorge Jauanilê Caribé, lançado em 2013.

Em 2018, publiquei o romance intuído por Pai Benedito de Angola, Uma nova chance, pela Editora Vida e Consciência, com a qual tenho contrato.

Durante a pandemia, produzi mais de 150 poemas baseados nos itans dos Orixás, reunidos na coletânea Poemas e contos do povo de santo, pela Editora Metanoia.

Como umbandista sou Dirigente da Casa de Acolhimento Benedito - Aldeia do Caboclo Pedra Roxa, situada em Nova Iguaçu, onde professo minha fé.


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