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O Camutue-Coletivo que escolhemos

Por: Pai Sid

01/05/2023 | 15:40


Quando escolhemos fazer parte de um terreiro abraçamos e somos abraçados por uma comunidade, mas também redescobrimos uma família. Um núcleo interno com pai, mãe e irmãos, com tios e avós de santo.




Dentro do terreiro há a convivência com os mais velhos e mais novos e ainda com os anciãos e crianças da comunidade. É nessa convivência que aprendemos a avaliar nossa fala, nosso verbo para que ele seja respeitoso com a trajetória dos mais velhos, e que nos policiamos enquanto mais velhos para que esse mesmo verbo seja sábio e coerente para agregar saberes aos mais novos.


Diferente de outras crenças religiosas, as casas de matriz afro-brasileira e ameríndia são chamadas de comunidade por terem em seu núcleo a família como base e ainda como diretriz. A oportunidade de escolher pertencer a esta ou aquela família de santo passa por conhecer a comunidade, seus membros e sua identidade, mas sobretudo por se conhecer e avaliar se a nossa forma de ver e viver ancestralidade está afinada com aquela comunidade.


Cada comunidade religiosa tem a sua identidade, seu próprio meio de enxergar a ancestralidade e de vivê-la dentro e fora das paredes do terreiro.

Essa forma de se estabelecer no território e em sociedade diz muito sobre esse camutuê-coletivo de cada terreiro, que é alimentado e sustentado por cada uma das individualidades que habitam e convivem naquele espaço.


Essa forma de ser e estar, esse camutuê-coletivo é a crença familiar que aponta o caminho para a comunidade, e embora seja sustentado por individualidades, é a figura da mãe e do pai que por sua vez aponta as direções e alimenta cada indivíduo. Que impulsiona, incentiva, corrige e orienta, respeitando os potenciais de cada filho ou filha em benefício comum.


Não é por acaso que em terreiro os tratamentos são por pai, mãe, irmã ou irmão. Não é por acaso que em um espaço de terreiro, os mais novos aprendem com os mais velhos, os mais velhos recorrem a mãe ou pai, e estes estão sempre recorrendo aos ancestrais.


O espaço terreiro é um lugar de crença no outro, um ambiente de fortalecimento do indivíduo e dos núcleos familiares, independente dos arranjos familiares que lá habitam. Esse respeito às individualidades de cada camutuê, e suas escolhas está diretamente ligado ao entendimento e respeito à crença coletiva da comunidade, ao camutuê-coletivo. Pois embora haja a individualidade, ela nunca pode estar acima da comunidade e é por ela que trabalhamos.


Entender essa crença coletiva que repassa e fortalece valores, saberes e caminhos é perceber que essa mesma crença produzida pela cultura do terreiro é escudo da comunidade, é força para cada indivíduo que vive nela, sobretudo que vive a comunidade.


Quando estamos distantes da nossa cultura, da crença que sustenta nossa comunidade, dificilmente iremos compreender o nosso lugar no mundo, teremos problemas em nos compreender pois iremos nos avaliar por crenças que nos distanciam da nossa comunidade, dos nossos ancestrais e distante de nossa crença-coletiva estamos distantes de nós. A crença e a cultura de uma comunidade fortalece nosso espírito, é o que traz saúde e plenitude aos nossos camutuês.


Sendo a cultura e crença de um terreiro por exemplo o que permite você ser quem e como é, se é por meio desse pilar que a sua comunidade reconhece os valores que você carrega, sua individualidade e sua voz, como se pode ser pleno longe dela? Como posso ir contra o que ela prega? Como posso me esquivar das oportunidades de troca e aprendizado que ela me oferece?


A crença de um terreiro deve ser alimentada por cada indivíduo pelo ebó do respeito, da boa convivência, da boa palavra e da escuta. É necessário que haja sempre em cada camutuê a escuta acolhedora em consonância com a palavra gentil, palavra essa que embora gentil precisa por vezes ser contundente no ato de educar, de despertar. A escuta é essencial para reforçar o “querer saber”, garantia de fortalecimento do aprendizado, da continuidade da memória e da identidade.


Quando se entra em um terreiro, em uma comunidade é importante compreender que aquele camutuê-coletivo já existia antes de nós, gestado por uma mãe ou um pai, por uma família e ancestrais que nortearam como e em que bases aquela comunidade crescerá. É preciso compreender que essa crença/cultura deverá ser também alimentada por nossa individualidade e que nós não somos a história, somos parte dela e do caminho que veio antes de nós.


Ser em um terreiro significa voltar para uma família, se reconhecer em uma ancestralidade e sobretudo abrir mão do que entendíamos como cultura, abrir mão da crença individual e vivenciar a crença-coletiva da sua comunidade. Quando não compreendemos isso e vivemos a cultura ou crença individual estamos minando as forças coletivas, estamos na verdade roubando o ngunzo da comunidade.


Se a palavra força da comunidade é uma, não podemos entrar na família proferindo outra, se o caminho traçado pelos ancestrais é um e eu me recuso a dar as mãos aos nossos para caminhar nele, seja por preguiça, divergências ou desinteresse, eu estou atrasando os passos dos meus irmãos. Eu preciso estar pronto para a escuta/busca que vai me educar para aquela comunidade e pronto para a palavra/ensino que é dita pelos meus. Se eu me esquivo desse saber, dessa com-vivencia do dia-a-dia eu estou me afastando da crença-cultura, do camutuê- coletivo.


A diferença entre ser de uma comunidade ou estar em uma passa por esse entendimento e pelo posicionamento de viver o dia-a-dia dela. A crença da comunidade e sua cultura é tudo aquilo que é feito dentro do terreiro e tudo aquilo que é feito pela comunidade fora do terreiro.


A crença de um terreiro é e deve ser libertária, removendo grilhões da menos valia, da aceitação do sofrimento, da resignação com o miséria. Está diretamente ligada a política na busca por justiça social, trabalhando para uma cultura anti-racista, que respeite e acolha a diversidade, que combata as violências. Viver fora desse conceito é perceber que não se está pronto para o que uma comunidade oferece dentro da sabedoria ancestral cunhada pelo povo preto e originário.


Não há como estar pronto para uma crença-coletiva se não compreendo que a minha palavra escrita ou dita tem o poder de agregar, de construir e curar, mas tem ao contrário, também o mesmo poder. A minha palavra carrega o meu camutuê, é ele sendo projetado no mundo e carrega também a voz de meus ancestrais pois são eles que sustentam nosso verbo.


Não há como estar pronto para uma comunidade se não percebo que a minha omissão diante do ensinamento dos meus velhos é matar o que chamo de ancestralidade. Se não reconheço isso não há como reconhecer uma família de santo.

Se a com-vivencia para mim é algo difícil e custoso é preciso avaliar se uma comunidade tradicional é de fato o meu lugar. Escolher uma família é acima de tudo acreditar nela e na força que ela possui construída por cada um dos que dela fazem parte. É acreditar no camutue-coletivo e viver sua crença em verdade.


Quando a sua comunidade abriu as portas para você essa família acreditou no seu ngunzo, na sua força. E você, acredita na força da sua comunidade? Como tem vivido e mostrado isso?





Pai Sid - AxéNews

Pai Sid

Pai Sid Soares é pai pequeno do CENSG - Centro Espírita Nossa Senhora da Guia em Volta Redonda RJ. Co-presidente da Comissão de Terreiros Mojuba, no Sul Fluminense que realiza um trabalho de fomento das políticas públicas para o povo de santo. [+ informações de Pai Sid]



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