Por: Ana Paula Mendes de Miranda
19/11/2024 | 09:56
Desde que o Ginga foi criado, em 2021, realizamos um encontro durante a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia, sempre no mês de outubro. Este ano o tema foi “Biomas do Brasil: diversidade, saberes e tecnologias sociais” e para o III Encontro optamos por tratar dos saberes de povos de terreiro, expressão de sua diversidade e de como suas experiências podem resultar em modos próprios de lidar com a natureza e o corpo, que não são excludentes.
A diversidade cultural brasileira está reconhecida oficialmente no Decreto 6040, que instituiu, em 2007, a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNDSPCT), que juntamente com os artigos 215 e 216, da Constituição Federal de 1988, são os marcos legais que delimitam o conceito de “povos tradicionais” como grupos culturalmente diferenciados, que possuem formas próprias de organização social e que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.
É com base nele que podemos buscar compreender os processos de expansão de fronteiras no Brasil, durante os períodos colonial e imperial, bem como os atuais processos referentes aos conflitos vividos na expansão do agronegócio, das milícias e de um evangelismo neopentecostal, que colocam em risco os territórios e os recursos naturais, que são condição para a sua existência.
Todo o trabalho do Ginga está orientado a partir de situações concretas – de pesquisa de campo, de aulas, de vivências cotidianas – diretamente marcadas pelo desafio de enfrentar os efeitos do racismo sobre os modos de vida que existem e resistem nos terreiros.
Quando falamos de “um corpo que pensa”, isso significa que optamos por abordagem interseccional acerca das relações raciais e de gênero, tomando por referência a Lei 10.639/03, em nossas atividades didáticas. Ao fazê-lo, trazemos para centro do debate a filosofia cartesiana – “penso, logo existo” – para duvidar de uma separação epistemológica entre corpo / mente, que tem sido a base do pensamento ocidental e da ciência moderna. Descartes inaugura a concepção de um sujeito moderno - o eu pensante - que existe independentemente do mundo externo, deixando de lado as outras formas de percepção.
Quando se está diante de modos de vida de povos de terreiro, que se constituíram a partir de tradições de matriz africana, segundo as quais o “ori” é a base de tudo, fica evidente que não há uma noção de corpo (“ara”) destacada das formas de percepção e dos sentimentos. A existência de um sujeito se dá pela busca do seu equilíbrio, consigo mesmo e com o mundo que o envolve, que é diretamente atravessada pela sua relação com a ancestralidade, os modos de lidar com a memória e a construção da corporalidade.
Estamos, portanto, muito distante de pensar a vida e os corpos numa perspectiva colonial, associada ao surgimento do capitalismo e ao desenvolvimento de sistemas de governamentalidade, segundo o qual a vida humana é exclusivamente organizada e controlada para manter a ordem social e econômica. Essa biopolítica desenvolvida para regular os corpos e as populações, e, ao mesmo tempo, garantir a produção e reprodução social é uma das bases que introduz o racismo, na prática.
O corpo que pensa é aquele que sente, que está atento ao mundo, aos outros (humanos e não humanos) e aos contextos de ação, nos fazendo refletir que a transformação sempre foi um modo de lidar com o mundo, sem que isso significasse a sua destruição, muito pelo contrário.
O racismo religioso que os povos de terreiro enfrentam é, dentre as distintas formas de manifestação do racismo, a única que não se consegue produzir uma narrativa de ocultação. Diante dos corpos incorporados de orixás, voduns, inquices, entidades, que representam as forças da natureza e ancestrais divinizados, se expressa todo o ódio construído pela força da dominação cristã eurocêntrica da demonização, como um processo de possessão – termo que revela todo o peso do pensamento colonizador.
O “eu pensante” do racionalismo ocidental não consegue entender e, portanto, aceitar a existência de sujeitos cujas consciências sejam plurais. Não consegue lidar com o desenvolvimento de saberes e técnicas corporais que possibilitam a comunicação com entidades espirituais e sua acoplagem aos seus corpos físicos.
Reconhecer que se está diante de um processo de agência de mão dupla é uma forma de assumir que a Antropologia ainda pode ser um caminho para se trilhar quando se trata de (re)conhecer as potencialidades das vidas nos distintos ambientes onde elas se expressam. Compreender a corporeidade construída nos terreiros, sem a primazia absoluta da razão, pode ajudar a perceber que não existe corpo sem ori, do mesmo modo que não é possível pensar a relação entre os seres e a natureza sem a energia do axé. Aceitar essas ideias não significa uma conversão religiosa, mas uma outra forma de conceber o mundo, é reconhecer que as tecnologias sociais desenvolvidas pelos povos tradicionais sempre souberam lidar com a diversidade e resultaram em vidas com qualidade, nas quais as emoções são parte indispensáveis.
Ana Paula Mendes de Miranda
Doutora em Antropologia (USP); Professora da Universidade Federal Fluminense; Coordenadora do Ginga; Pesquisadora do INCT Ineac.
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