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O culto aos caboclos

Por: Bàbálorixá Eduardo D'Ayrá

29/03/2023 | 18:20


co autor- Nicholas Corrêa do Amaral Faina


No dia da festa de Iemanjá, há cerca de um ano, tive a oportunidade, graças a um convite de Baba Eduardo, de falar em um palco lotado de pessoas e comentar sobre uma questão muito debatida nos candomblés brasileiros: o culto aos caboclos.




De fato, a figura do caboclo sempre despertou uma certa desconfiança nos candomblés puros, que sempre procuraram não mostrar ao público a veneração dessas entidades, mantendo-as assim reservadas para não perder o prestígio social do reconhecimento como terreiro de tradição africana.


No ideal coletivo, já na década de 1930, pensava-se que o caboclo era simplesmente um espírito ligado ao território brasileiro e não africano, e sua veneração poderia comprometer a pureza do culto nagô. Essa dinâmica, antropologicamente, é explicada pelos estudos de Nina Rodrigues, considerado o pioneiro dos estudos do candomblé, embora esse fosse um medico, que tentou encontrar a pureza nos cultos baianos.

Mais tarde, em 1937, Edison Carneiro se dedicou aos terreiros bantu, descrevendo-os como ricos em sugestões para os estudiosos da etnografia afro-brasileira (CARNEIRO, 1991, p. 128-129).


De fato, hoje sabemos o quanto o Candomblé de origem angola mantém vivo o culto ao caboclo, sem se preocupar em mostrá-lo ao público. Isso decorre de uma profunda ligação que sempre existiu entre o caboclo e a África, e que, devido aos estudos de pureza, foi estigmatizada ao longo dos anos, chegando ao ponto de ser definida como impura.


Carneiro, entretanto, considerou os candombles de caboclo resultado de uma fusão da mitologia dos negros bantos, já contaminada por influências jeje-nagôs e malês, com a mitologia dos selvagens da América Portuguesa” (CARNEIRO, 1991, p. 133).

Por volta da virada do século XIX para o XX, os yoruba passaram ser reconhecidos internacionalmente como um povo culto e orgulhoso, possuidores de uma religião sofisticada e que não se rendeu ao colonialismo.


O ideal de pureza, estabelecido não por regras espirituais, mas por pesquisas etnográficas grosseiras, decretou a ocultação do culto ao caboclo, para mostrar a ligação direta com a África. Entretanto, como atesta Carneiro “no Engenho Velho e no Gantois, duas casas onde a tradição ketu exerce uma verdadeira tirania, pude ver cantar e dançar para encantados caboclos” (CARNEIRO, [s.d.], p. 62).


Estudos atuais de Nicolau Parés (2006) sugere que a reivindicação por uma ascendência africana por parte de terreiros que tinham condições de reclamar uma fundação histórica tenha sido reforçada no período imediato ao Pós-Abolição, quando a grande maioria da população negra era crioula, e os velhos africanos foram progressivamente desaparecendo. Ter um culto “africano” ou “nagô puro” era uma força simbólica para se destacar dos terreiros de fundação recente. Naquela época a valorização dos terreiros estava ligada diretamente à desendência africana, e um candomblé que cultuasse caboclos estava destinado à condição de ser considerado menos legítimo ou mais “misturado”.


O conceito de um culto sincrético afro-ameríndio, contextualizado por Carneiro, foi, no entanto, desconstruído pelos estudos do antropólogo dos Santos (1995) e, recentemente, pela bibliografia africanista. Janzen (1982, 1992) mostrou como muitas sociedades da África Central compartilham um princípio cosmológico comum dividido em dois polos (o mundo dos vivos e o dos mortos). Para prover esse equilíbrio necessário, realizam ritos coletivos, denominados por ele de “cultos de aflição” ou, ainda, “tambores de aflição”. Nesses cultos, os espíritos territoriais eram invocados em lugar dos espíritos ancestrais, já que os primeiros eram mais ""eficazes"" para o alançe desse equilíbrio .


O historiador Robert Slesen encontrou semelhanças entre as práticas coletivas presentes no Sudeste brasileiro e os chamados cultos de aflição, afirmando que:

[...] No Brasil, os caboclos, quando se apossam de pessoas em rituais de transe, geralmente são espíritos fortes, toscos, belicosos – iguais a certas almas ancestrais antigas, também transformadas em espíritos territoriais, dos povos Kongo. Curiosamente, a figura do caboclo, geralmente considerada no Brasil (agora com mais propriedade ainda) como evidência de forte interação entre africanos e ameríndios, é também, às vezes, criticada como uma manifestação cultural “impura” que não segue as matrizes de uma sensibilidade africana. Ora, para os centro-africanos, não existiria nada mais “puro”, mais fiel aos princípios das expansões bantu dos últimos seis mil anos, do que o espírito caboclo (MENDES, 2014, p. 16).


O argumento de Slenes é reforçado pelos recentes estudos da historiadora Kairn Klieman (2003, 2007), que investigou práticas religiosas durante a expansão bantu. Os grupos migrantes, ao chegar em terras alheias, tinham a preocupação em identificar os espíritos que “tinham chegado primeiro” naquela terra, e recorriam aos sacerdotes locais para aprender os métodos de abordagem e culto a tais espíritos, que eram reconhecidos como “donos da terra”.


Dessa maneira, observamos que o culto a caboclo, pode ser a chave para a compreensão sobre possíveis contribuições centro- africanas na formação do candomblé, substituindo assim o conceito básico para dividir os terreiros: “puros” e “impuros”.


Concordo plenamente com a tese de Slenes de que o culto ao caboclo provavelmente representa o elo mais visceral e ancestral que existe entre a África e o Brasil e que, durante séculos, resistiu às tentativas de apagamento cultural, devido a estudos feitos por brancos e, consequentemente, repletos de preconceitos eurocêntricos.

A federação Omo-Abebe, nesse aspecto, decidiu lutar contra esse preconceito completamente desprovido de contextualização histórico-cultural e exaltar a figura do caboclo não apenas em nível teórico, mas também prático. De fato, após meu discurso, os ogans tocaram para nos lembrar da importância dessas entidades não só como pertencentes ao Brasil, mas também como afrodescendentes.


A presença cultural do caboclo, na visão do diretor Baba Eduardo também, é inescapável durante o festival de Iemanjá, pois ambas as entidades estão ligadas à diáspora africana e, na visão africana, não há culto aos orixás sem o culto aos donos da terra.

Por essas razões, durante a próxima festa de Iemanjá, os caboclos também serão lembrados com celebrações culturais e apresentações no palco, para mostrar a importância do legado que, como afrodescendentes, herdamos dos mais sábios.


Em respeito aos mais velhos, é impossível cultuar qualquer entidade iorubá, jeje, nagô, bantu ou angola sem antes lembrar dos donos dos terreiros: os caboclos!


Professor e Antropólogo

Nicholas Corrêa do Amaral Faina




Bàbálorixá Eduardo D'Ayrá - AxéNews

Bàbálorixá Eduardo D'Ayrá

Bàbálorixá Eduardo D'Ayrá foi iniciado na nação de angola tumba jussara, pela Iyálórixá Danda Luamicide no dia 19 de março no Rio de Janeiro em Nova Iguaçu (Cabuçu), hoje pertencente a nação de Ketu. Sendo o filho mais velho de quatro irmãos, é o unico iniciado no Candomblé. Hoje, Bàbá Eduardo com residência fixa na Suíça, na cidade de Zürich (Zurique), em 2019 teve a iniciativa de criar um projeto cultural chamado Ọmọ àbèbé. [+ informações de Bàbálorixá Eduardo D'Ayrá]



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