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O erótico sagrado na Umbanda

Por: Ademir Barbosa Junior


Foto: Reprodução

15/10/2024 | 08:12


Por ter um caráter holístico e, portanto, por valorizar o corpo e o sensório, a Umbanda é uma religião da sensualidade. Os cinco sentidos contribuem para o equilíbrio espiritual, emocional, mas também para o físico. Dessa forma, fundamentos, liturgia, práticas cotidianas etc. se estabelecem por meio da ativação dos cinco sentidos básicos. Vejamos alguns exemplos:


Olfato - Defumação, perfumes, fumo, bebidas, alimentos etc.

Audição - Pontos cantados, conversas com Orixás, Guias e Guardiões, palestras etc.

Tato - Arrepio ao toque da curimba e da presença da Espiritualidade, abraço, pedido de bênção com beijo na mão, pés descalços (em ponto de força da natureza ou não), banhos ritualísticos etc.

Visão - Cores, elementos de culto etc.

Paladar - culinária, bebidas e outros.



Os cinco sentidos se potencializam quando associados ao sexto, o espiritual, o intuitivo. Dessa forma, por exemplo, a dupla vista (visão), a materialização (visão e tato), o odor de manifestações espirituais (tato), bem como sons e vozes captados de outras dimensões (audição) e determinadas sensações gustativas (paladar) quebram as fronteiras entre o físico e o espiritual e mental.

Potencializados, assim, os cinco sentidos, ainda, costumam ser acessados ao mesmo tempo, integrados. Dessa forma, não apenas se ouve ou se canta um ponto cantado, por exemplo, mas se dança e bate palmas concomitantemente. A comida de Axé excita pelo sabor (paladar) enquanto seu cheio se mistura ao das ervas da defumação (olfato). Essas experiências sensuais e sensoriais podem ser vivenciadas nos pontos de força da natureza ou construídos por mãos humanas, bem como no próprio terreiro ou no altar doméstico, em maior ou menor intensidade, durante as liturgias e evocados no cotidiano pela memória, mecanismo de atualização e ampliação das experiências vivenciadas1.


A sensorialidade e a sensualidade pedem um corpo. A compreensão do espiritual e das Divindades, portanto, passa pela antropomorfização. Se a Divindade concebe o ser humano, este, por sua vez, também cria a Divindade à sua imagem e semelhança. Daí a importância das narrativas mitológicas e arquetípicas para a compreensão tanto da espiritualidade quanto da sabedoria ancestral. Por uma questão de recorte temático, privilegiaremos a mitologia dos Orixás, a qual, ainda, é negligenciada em muitos terreiros de Umbanda.


Como em toda mitologia, a dos Orixás, antropomorfizados, traz uma série de tensões, bem como a convivência cotidiana, lado a lado, entre seres divinos e/ou divinizados e as criaturas humanas. Tempo e espaços mitológicos estão suspensos, são verdadeiros oásis: o Aiê (plano físico) onde Oxalá se casa com uma filha de Oxum não é o mesmo limitado por fronteiras ou datado arqueologicamente. Ademais, a antropomorfização carrega não apenas sabedoria e bondade: ao contrário, humanizada, a Divindade conquista sabedoria e bondade por meio de erros, desvios, senões, sentimentos e experiências negativos etc.


A riquíssima mitologia dos Orixás é também variada por múltiplas razões, dentre elas as soluções encontradas pela oralidade, os esquecimentos, o preenchimento de lacunas etc. Essa diversidade, em vez de estabelecer um cânone, contribui para dar mais sabor à roda de conversa, às trocas culturais, à construção de uma identidade comum. Isso vale também para as reflexões a respeito do erótico e de como se relaciona com o sagrado e como sacraliza o cotidiano. Dessa forma, quando se fala em Sagrado Masculino e Sagrado Feminino, o que se tem não é apenas o valor de Aborôs (Orixás ditos masculinos) ou Iabás (Orixás ditos femininos), mas de cada masculino e feminino individual da comunidade.


A despeito da antropomorfização e das consequentes representações, “masculino” e “feminino” não devem ser entendidos aqui como distinções biológicas ou manifestações de gênero, e sim como Animus e Anima, Convexo e Côncavo, Assertivo e Receptivo, Aspecto Ativo e Aspecto Passivo. Nesse contexto, é muito significativo que várias religiões de terreiro, dentre elas alguns segmentos umbandistas, chamem o (a) iniciado (a) de “iaô”, vocábulo que em sua origem significa “esposa mais jovem”. Têm-se aí as características elencadas acima para “feminino”2, energeticamente necessária para todas as manifestações de Orixás, Guias e Guardiões, notadamente a chamada incorporação.


Para tratar do Sagrado Feminino e do Sagrado Masculino a partir da mitologia dos Orixás, tomemos algumas das relações entre Xangô e as Iabás. Xangô é o Orixá da Justiça, que atinge esse patamar após uma série de peripécias em que se mostra tanto justo quanto injusto. Sua sabedoria decorre, portanto, da síntese de suas luzes e sombras. Enquanto representação do masculino, em muitos momentos mostra-se imaturo, visceral, arrogante, impulsivo, e não apenas com relação ao feminino (há um relato mitológico em que tenta violentar Oxumaré, um Aborô a cuja beleza não resiste).


Xangô, jovem, tenta violentar a própria mãe, Iemanjá, que, em fuga, tropeça, o que leva a jorrar de seus seios fartos as grandes águas. Euá é uma jovem que se decepciona com Xangô e se isola no cemitério (lugar de morte, mas também de transmutação e passagem, recomeço): torna-se protetora das virgens, portanto faz da consciência de sua dor uma forma de cura para suas iguais3. Não à toa, Euá é também o Orixá do horizonte, que promete amplidão e descobertas a quem por ele se aventurar, isto é, desejar ampliar seus horizontes.


Com três esposas, Xangô vive um casamento poligâmico. Oxum, das águas doces, é seu oposto complementar: se o fogo ferve a água, a água também apaga o fogo4. Obá é sua esposa mais velha, responsável pelas brasas, que quando açuladas, reacendem o fogo. Diversos mitos narram a rivalidade entre Oxum e Obá (nesses relatos, é interessante notar como a impetuosa5 Iansã, com a qual Xangô mais possui afinidade energética, pelo fogo, e pelo fato de, enquanto ele se ligar ao trovão, ela se ligar aos raios, se mantém impassível enquanto as outras duas esposas digladiam).


O relato mais conhecido dessa rivalidade associa-se não à cama, mas à cozinha enquanto elemento de prazer e intimidade6. Xangô é conhecido pelo apetite sexual, mas também pelo paladar. O Orixá se comprazia com a comida feita por Oxum. Obá, enciumada, perguntou à rival seu segredo. Oxum, com um pano na cabeça, lhe disse que havia cortado as orelhas e servido a Xangô. Obá, então, em sua vez de preparar a comida para o marido, cortou a orelha esquerda e colocou em sua comida. Quando Xangô viu aquilo, teve nojo e perguntou do que se tratava. Ao ouvir a explicação de Obá, irritado, correu atrás dela e de Oxum. Ambas, em dado momento, caíram e deram origem aos rios Obá e Oxum, em cuja confluência a passagem é extremamente perigosa, e mesmo mortal.


Das inúmeras possíveis reflexões, destacamos o feminino conforme as características elencadas acima (côncavo, receptividade etc.). Supondo que a história de Oxum fosse verdadeira, ela teria entregado ambas as orelhas, em sua totalidade. Obá, por sua vez, ressentida, afoita, enciumada, apenas a orelha esquerda. De qualquer sorte, existe uma lição subjacente: a receptividade e a entrega não podem comprometer a integridade do ser, levando a mutilar-se pelo outro (fossem ambas as orelhas de Oxum, seja a esquerda de Obá). Se tomarmos o lado esquerdo como referência dos aspectos emocionais e a ligação da orelha com a vagina7, teremos que Obá, ao se mutilar, negou o próprio feminino. Tais disputas e mutilações são incômodas inclusive para o masculino representado por Xangô.

Existe um relato que retrata o amadurecimento do masculino vivenciado por Xangô e está ligado a Iansã. Se Iansã é o Orixá que mais se afina energeticamente com Xangô, também apresenta seu oposto, seu medo, seu tabu8, a morte, pois ela é a rainha dos mortos, dos eguns9. Xangô era perseguido por inimigos e se refugiou na casa de Iansã, pedindo ajuda. Os inimigos, por respeito a Iansã, pararam à porta. De repente Iansã saiu e eles a saudaram, permanecendo no mesmo lugar. Pouco depois, Iansã saiu outra vez da casa e, somente então perceberam ter sido ludibriados, pois, da primeira vez, não havia sido Iansã, e sim Xangô, travestido de Iansã.


Esse travestimento é integração do masculino e do feminino. Colocar-se no lugar do outro, sentir o feminino salvou Xangô. Narrativas arquetípicas como essa são universais: na mitologia nórdica, Thor, o deus do trovão, consegue recuperar seu martelo após travestir-se como a deusa Freya e passar por algumas peripécias. Note-se a similaridade da narrativa, entre Thor e Xangô, entre o martelo do primeiro e o machado do segundo.


Os aspectos antropomórficos e tudo o que representam ou desencadeiam praticamente foram apagados, ou ao menos tiveram sua carga reduzida na religião de Umbanda, certamente por esta ser urbana e agregar, em sua matriz cristã, elementos moralizantes seculares. Enquanto em Cuba, por exemplo, Oxum é comumente chamada de “Afaradi Iya”10, “Mãe Puta”, isso é praticamente impensável na Umbanda, mesmo com a compreensão de que “puta”, aqui, não representa o servilismo aos desejos patriarcais por meio da venda de favores sexuais, notadamente por subsistência11, mas integridade, liberdade, força de independência e transgressão. Na Umbanda, de modo geral, a transgressão migra para a figura das Pombogiras, sendo, inclusive desvirtuada, não apenas pelo senso comum e pelo preconceito, mas também por alguns adeptos da Umbanda, e mesmo de outras religiões tradicionais de terreiro.


Nos terreiros de Umbanda que se utilizem de imagens afro para representar os Orixás (em sua maioria são utilizadas imagens de santos católicos sincretizados aos Orixás), dificilmente se encontrará uma Iabá com os seios à mostra, mesmo que referenciem mais a maternidade que a feminilidade, num contexto em que se valora a primeira como mais sagrada que a segunda.


Como a sensualidade do feminino migrou das Iabás para a Pombogira, conforme apontamos, imagens de Pombogiras seminuas e com os seios à mostra. Entretanto, mesmo essa forma de representação foi ameaçada há poucos anos, quando parecia haver consenso sobre sua suposta imoralidade. Tais concepções reproduzem os preconceitos sociais, forma, pois, da mesma forma como se aceita com naturalidade uma imagem de Exu com o torso desnudo12 enquanto a muitos incomoda a imagem da Pombogira com os seios expostos, a sociedade aceita o torso nu masculino enquanto proíbe e recrimina a exposição dos seios femininos, mesmo numa praia. Nesse sentido, embora haja praias mundo afora para a prática de topless (e mesmo de nudismo), uma foto de nu artístico feminino, com os seios à mostra, é até admitida reproduzida em mídias eletrônicas, contudo com as aréolas desfocadas. O patriarcalismo, mesmo quando cede terreno, cria mecanismos para censurar o feminino, fazendo a exceção confirmar a regra: se o “problema” não são os seios, mas as aréolas, por que as masculinas podem ser expostas livremente13?


A arte sacra umbandista, mesmo que cristianizada e esvaziada de erotismo em graus diversos ou sincrética (santos e santas católicos) difere, porém, da arte cristã-católica tradicional, a qual oscilou em diversos períodos entre o desprezo ao corpo nas pinturas e imagens esquálidas medievais, a valorização do corpo (sobretudo por influência greco romana) no Renascimento e a ambiguidade entre o gozo físico e o espiritual no Barroco14, quando as duas tendências anteriores conviviam de forma tensa. Mesmo a imagem de Nossa Senhora da Conceição, imaculada e, mesmo virgem, grávida, conforme os dogmas católicos, evoca no umbandista a maternidade adogmática e, portanto, mitologicamente física, de Iemanjá e Oxum, bem como a feminilidade e os atributos eróticos (sedução, desejo etc.) dessas Iabás. A restrição do significante não abafa a multivocalidade do significado.


O caso dos pontos cantados pede uma reflexão à parte porque muitas vezes são tomados ao pé da letra e, quase sempre, em detrimento do feminino, sobretudo no que tange às Pombogiras, de modo a reforçar estereótipos. Assim como no caso da mitologia dos Orixás, há que se aprofundar no simbólico e não se deter no aparente. Vejamos alguns exemplos de trechos de pontos:


Pombogira é

Mulher de sete maridos

Cuidado, moço

Ela é um perigo


Promíscua, insaciável, precisa ter sete maridos? Bem, se Xangô pode ter três esposas, por que não? Aqui não se trata de discutir poligamia de Orixá ou de Pombogira. Uma breve análise permite perceber que Pombogira é mulher de sete, portanto múltiplos caminhos. Caminha por onde quer, logo por toda parte. Se tem sete (inúmeros) maridos, possui o mesmo tanto de elementos de Axé, multiplicando-os ao sintetizar as várias formas de masculino ao seu multifacetado feminino. Por que é um perigo? Por que segundo o senso comum e aqueles que se valem erroneamente da figura, do nome e da (suposta) energia da Pombogira, esta se dá a amarrações, a separações de casais, deseja o marido alheio? Certamente que não. O moço evocado no ponto deve ter cuidado e respeitar (não temer) a energia da Pombogira, do Sagrado Feminino, que se torna um perigo quando deturpado, erroneamente manipulado. O perigo está na provocação do feminino por parte do masculino opressor, o qual, conforme a lei de ação e reação, acumula carma cada vez que avilta o feminino. Portanto, não se trata de ameaça, e sim de sábio conselho para amar, respeitar, e não dominar, subjugar.

A maioria das pessoas teme a plenitude da alegria. Daí a demonização da gargalhada de uma Pombogira (de quebra, não apenas uma gargalhada, mas um recurso de dissolução da negatividade, para dizer o mínimo) e a naturalização de um Poder Supremo patriarcal, rancoroso e vingativo, que lança às penas eternas quem foge aos ditames da normatividade e dos preconceitos sociais. Enquanto o medo mantém essa normatividade e esses preconceitos, a gargalhada da Pombogira os desestabiliza. "Cuidado, moço/Ela é um perigo!"



E Padilha

Você é namoradeira

Casou-se com Seu Tranca-ruas

Com seu Marabô e Seu Exu Caveira


Note-se a intimidade (não o despeito) com que Dona Maria Padilha é tratada enquanto os Exus são chamados de senhores. Certamente a mais popular das Pombogiras, Maria Padilha, ao ser chamada de “namoradeira”, auxilia na ressignificação do termo, que aqui, evidentemente, não tem a pecha preconceituosa do uso cotidiano. Vejamos:


  1. “Namorar” evoca prazer, alegria, enquanto “casar”, para a maioria das pessoas, referencia responsabilidade, compromisso, e não necessariamente prazer. Mesmo pessoas casadas, quando se referem a momentos de intimidade dizem “Vamos namorar?”, “Estamos precisando namorar mais…”. O vocábulo “nAMORar” comporta “amor”, portanto o mínimo de conexão (senão propriamente o amor), cumplicidade, leveza, alegria, o que muitas vezes se perde ou não se encontra num casamento15.

  2. Os Exus aqui citados representam caminhos, referências, linhas de trabalho, pontos de força e outros elementos com os quais o Axé de Maria Padilha de multiplica e combina, na união de energias ditas femininas e masculinas.

  3. Maria Padilha é “namoradeira”, mas “casou-se” com os três Exus, vale dizer, é “namoradeira” (prazer, liberdade), mas também senhora, portanto mulher de cama e sala, conforme a visão predominante da sociedade, aqui também ressignificada: Maria Padilha está em qualquer cômodo da casa (caminho). Casamento evoca compromisso, acordo firmado, construção comum de vida, constituída (e multiplicada aqui) com os três maridos.

  4. “Namoradeira”, Maria Padilha não perde o prazer num casamento que lhe afoga as potencialidades (seu Axé), antes as multiplica e soma às dos masculinos evocados pelos três Exus. Tais potencialidades, por serem múltiplas, não excluem outros desdobramentos e combinações. Em outras palavras, por ser “namoradeira”, Maria Padilha se uniria energeticamente apenas aos três Exus? Teria outros namorados e até mesmo outros possíveis e futuros maridos?



Indecente, portanto, é não meditar em profundidade sobre os pontos cantados. Em tempos em que muito se fala (e com razão) sobre responsabilidade afetiva, vejamos este ponto de Zé Pelintra:


Oh Zé

Quando vem lá da lagoa

Toma cuidado

Com o balanço da canoa

Oh Zé

Faça tudo o que quiser

Só não maltrate

O coração desta mulher


Ética, moral ou moralismo: o que define uma relação saudável e consensual? Esse trecho do ponto nos auxilia a refletir sobre.


Muitos pontos, com suas multiplicidades de leitura apontam para o erótico, ressignificando-o no tempo-espaço sagrado e litúrgico. Estratégia de compreensão holística da vida, inerente à Umbanda, é também uma forma de inclusão a elementos recalcados na psique de indivíduos e grupos sociais: o corpo, o desejo, o prazer etc. Entretanto, esse acolhimento não deve ser confundido com a crueza não elaborada do explícito, do pornográfico, do que reproduz papéis sociais de dominação e opressão, mesmo como tratado como “tradição popular”, como já ouvi em defesa feita por pessoas do Axé a respeito de “pontos cantados” como


E cebola

Tempero de buceta

É rola!


A genitalização do trecho desse suposto ponto cantado dedicado a Pombogiras traz que lição de sabedoria e libertação (conteúdo) e evoca que simbolismo (forma)16? Na contramão de deturpações como essas, cito a fala de um sacerdote umbandista que compareceu a uma festa em homenagem a Zé Pelintra onde havia um séquito de garotas de programa seminuas, apresentadas após a abertura do trabalho. Gentil e educadamente, o sacerdote pediu licença e se retirou, em respeito, conforme me relatou, não a Seu Zé Pelintra, mas às garotas de programa.


A religião de Umbanda, ao potencializar a compreensão e a vivência do holismo (corpo-mente-espírito), bem como do erótico e do sensual, potencializa a sabedoria ancestral naquilo que ela também oferece com essas características. Se Narciso, na mitologia grega, afoga o corpo e a psique no culto exacerbado à própria imagem, Oxum, quando se olha no espelho, nos ensina o auto-amor, a auto-estima, o autoconhecimento, a observação do próprio eu etc. São arquétipos diferentes Narciso e Oxum (“diferentes”, não um melhor que o outro), contudo o patriarcado ocidental tende a valorizar o primeiro em detrimento da Iabá (por vezes, tentando domesticá-la). Partir o espelho de Oxum, porém, não significa fragmentá-la ou ao seu culto: o gesto demonstra a fragmentação de quem parte o espelho por medo de olhar para si mesmo. Quanto mais olha para o espelho, mais a Umbanda reforça sua identidade.




1 A experiência erótica/sensual não é apenas rememorada, mas também ressignificada e amplificada a cada evocação

2 O aspecto feminino da doação e da conexão com a Divindade aparece nas mais diversas culturas e manifestações religiosas. A título de exemplo, uma breve história indiana narra a história de um sacerdote responsável por um templo onde apenas os homens eram admitidos. Uma mulher desejava muito adentrar naquele templo, mas a autorização lhe foi negada pelo sacerdote. Naquela noite, ele sonhou com a Divindade, que lhe disse “Mulheres não podem entrar no templo, contudo, depois de tantos anos de serviço sacerdotal, você acha que ainda é um homem?”

3 Nesse sentido, muito se assemelha a Quíron, arquétipo mitológico ocidental do curador.

4 Tal relação é apontada por Ildásio Tavares em Xangô (2 ed., Rio de Janeiro, Pallas, 2015).

5 Ousada, Iansã domina o fogo quando, ao buscá-lo em longínquas terras para Xangô, mesmo sem autorização, o colocou na boca e literalmente o absorveu como um de seus elementos.

6 Nas sociedades contemporâneas é comum dividirem-se as visitas entre as que são recebidas na sala e as mais íntimas, com acesso à cozinha, espaço de intimidade.

7 “Auricula”, em latim, de onde se origina “orelha”, significa “pequena vagina”.

8 Nos terreiros de Cultos de Nação, a casa de Balé (ancestrais, sobretudo no Candomblé Angola) e os assentamentos de Obaluaê comumente não costumam próximos aos de Xangô.

9 O vocábulo provém do iorubá e significa “osso”, “esqueleto”. Refere-se a alma ou espírito, não necessariamente com acepção negativa. Cf. BARBOSA JR., Ademir. Dicionário de Umbanda (São Paulo: Anúbis, 2015, p. 65).

10 Cf. RISÉRIO, Antonio. Oriki Orixá.São Paulo: Perspectiva, 1996.

11 Tal servilismo e submissão impostos à mulher (e a toda sorte de feminino, por extensão) não se dá apenas na prostituição, mas também nos casamentos forçados e arranjados, bem como no mercado de trabalho, no excesso de reponsabilidades domésticas não compartilhadas com equidade na maioria das famílias etc.

12 Em alguns terreiros, não apenas Exus, mas Caboclos e outras Entidades trabalham com o torso nu. Não se pretende aqui, para não se deturpar a função de um terreiro diante da assistência e dos próprios médiuns, provocar problemas legais e mesmo colocar as médiuns em risco sugerir que as mesmas trabalhem com os seios à mostra. A pergunta é por que ao masculino se autoriza e ao feminino não? Não seria o caso de esses médiuns usarem camisa ou bata?

13 O moralismo, conforme vimos, aposta nas polaridades, uma exposta, outra velada. Enquanto setores conservadores se incomodam com a amamentação em público, vídeos pornográficos onde atuam lactantes fazem sucesso.

14 Vide a escultura “O êxtase de Santa Teresa”, concluída em 1642, de Gian Lorenzo Bernini.

15 Em texto publicado na revista Veja de 14 de maio de 1997, Roberto Pompeu de Toledo aponta que em “Vou-me embora pra Pasárgada”, célebre poema de Manuel Bandeira (1886-1968), o eu-poético afirma que lá “tem prostitutas bonitas/para a gente namorar”. Nas palavras de Pompeu, “essa é outra das magias operadas pelo poeta. As prostitutas não são, rudemente, para fornicar. Não são para saciar as urgências da carne. São para os vagares do namoro. Ou, então, o poeta está usando ‘namoro’ como nome do ato sexual, o que emprenha de delicada fantasia algo que dito de outra forma, ainda mais que praticado com prostitutas, soaria com a brusquidão da satisfação fisiológica. Some-se a isso que, do ponto de vista do cidadão alçado à glória de ir morar em Pasárgada, não acontece ser recepcionado por ninfas, como aconteceu com os navegadores portugueses, nos Lusíadas, ao chegar à Ilha de Vênus, ou "ínsula divina", concebida pela imaginação de Camões como prêmio pela façanha de ter achado o caminho das Índias, e descanso das enormes fadigas da jornada heróica. Também não são anjos ou anjas  que aguardam o felizardo, ainda que Pasárgada soe como uma contrafação do Paraíso. E, ao contrário do que ocorre na Ilha de Caras, não são nem Luíza Brunet nem Xuxa que o escoltam. Simplesmente, são prostitutas.” https://www1.folha.uol.com.br/fol/ideias/ideia130.htm

16 O exemplo não contempla o trânsito entre o sagrado e o profano, o litúrgico e o cotidiano, o corporal e o espiritual, de resto comum a diversas tradições, contudo tão marcante na adoção pelo chamado pajubá (dialeto que funciona como espécie de língua franca) por parte das comunidades lgbtqia+. Esse trânsito, com palavras de diversas áreas, privilegia, porém, vocábulos referentes ao corpo, à sexualidade, aos gêneros e une segmentos historicamente marginalizados e excluídos pela heteronormalidade e pelas religiões dominantes.




Ademir Barbosa Junior - AxéNews

Ademir Barbosa Junior

Ademir Barbosa Júnior (Pai Dermes de Xangô) é dirigente da Tenda de Umbanda Caboclo Jiboia e Zé Pelintra das Almas (Piracicaba – SP), fundada em 23/4/2015. É Doutorando em Comunicação pela UNIP (Bolsa PROSUP/CAPES) e Mestre em Literatura Brasileira pela USP, onde se graduou em Letras. Pós-graduado em Ciências da Religião pelo Instituto Prominas, é professor e terapeuta holístico. [+ informações de Ademir Barbosa Junior]


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|| Artigo de Opinião: texto em que o(a) autor(a) apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretações de fatos, dados e vivências. ** Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do AxéNews.

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