Por: Leonardo Mattos
02/01/2023 | 18:12
Estimando um ano de muita prosperidade e vitórias para todos os meus irmãos e todas as minhas irmãs, destaco a grata e honrosa oportunidade que me foi concedida pelo Portal AxéNews e seu idealizador, companheiro Leandro Ribeiro, por eu ser um dos responsáveis pela abertura das atividades desta rica ágora digital, em 2023. Esse Àjó de notórias e aguerridas personalidades de axé do Rio de Janeiro, faz-se fundamental para o refino das reflexões despendidas em favor das ações resultantes das políticas públicas ou não desenvolvidas pelas entidades da Administração Pública, em seus mais diversos níveis e pela sociedade civil, considerando a multiplicidade de representações e vieses.
Ingresso esta breve explanação com uma premissa que deve ser basilar para a atuação pelos direitos dos povos tradicionais de matriz africana ou de terreiro, no escopo da luta pelos direitos humanos. É sabido que nós, povos de terreiro, somos frutos de um processo histórico e geográfico resultante da diáspora africana que suplantou do continente-mãe, contingentes populacionais na casa dos milhões, de forma forçada, para as Américas e demais pontos do mundo. O Brasil é o país que mais recebeu negros cativos e negras cativas que foram escravizados e escravizadas (cerca de 5 milhões), que também manteve o maior tempo oficial de desenvolvimento do modo de produção escravista por meio do tráfico negreiro e que foi um dos últimos a suprimi-lo.
As influências dos povos e das etnias que migraram, forçadamente, de diversas localidades do continente africano, como os atuais países: Benin, Togo, Angola e Nigéria, por exemplo, formam, indiscutivelmente, a cultura, a identidade e o modo de vida brasileiro. São diversos signos sociais e códigos culturais que estão presentes no cotidiano, sob os mais diversos aspectos e elementos, resultantes do processo de resistência e recombinação desenvolvidos ao longo de quase 4 (quatro) séculos.
Dessa forma, a premissa que tem as referidas variáveis e muitas outras que terei a oportunidade de desenvolver e discutir com vocês, de forma sistemática e aplicada, ao longo de 2023, neste rico espaço do Axé News é o exercício cotidiano da reparação. Reparar pode significar diversas ações para os mais diversos grupos sociais. Para os povos tradicionais de matriz africana, engendra, em primeiro lugar, na condição básica, constitucional e humana da sobrevivência pela garantia dos direitos de existir, falar, vestir, produzir alimentos, dançar, cantar. Esses atos que podem ser tão comuns, ainda não se convertem em realidades concretas para esses segmentos.
Um triste exemplo da violação dos direitos fundamentais dos povos de terreiro são as constantes invasões e destruições dos territórios tradicionais afro-centrados. É certo que a União, estados e municípios dispõem de instrumentos de combate à intolerância religiosa por meio de leis e decretos, mas é preciso que sejam criados e concretizados dispositivos legais que promovam direitos múltiplos para os povos de terreiro em diversos campos, como na saúde, educação, cultura, segurança alimentar, patrimônio cultural material e imaterial, previdência, infraestrutura e terras, dentre outros. O avanço das políticas nessas e em demais áreas representa um grande reforço no próprio combate à intolerância religiosa. O Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, desenvolvido pela Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR, entre 2013 e 2015, é um simbólico e representativo resultado da produção integrada e transversal de políticas públicas nesse sentido para os grupos em questão.
Considero, nesse sentido, que a compreensão do fenômeno da tradicionalidade de origem e influência africana, a partir dos terreiros pode ser dividida em duas dimensões, quais sejam a religiosa e a étnico-racial, no campo da Igualdade Racial. A primeira, reúne elementos relacionados ao culto dos orixás, inquises, voduns, sob o ponto de vista do sagrado e a segunda, das tradições que foram trazidas do continente africano e que foram ou não recombinadas no Brasil, como o próprio candomblé, sob a perspectiva antropológica de povo e dos saberes correspondentes a ele. É certo que essas duas dimensões possuem diversos pontos aglutinadores e são complementares. No entanto, para o refino conceitual e temático para a construção, monitoramento e aperfeiçoamento das políticas públicas, é necessário compreender, separadamente, esses dois espectros.
Os povos de terreiro são considerados, pela literatura científica e jurídica no Brasil, enquanto grupos que representam determinados segmentos religiosos e, também, são classificados enquanto povos tradicionais em razão de códigos e signos, como a língua, por exemplo, serem específicos e vitais para a preservação dessas comunidades que só existem em razão da diáspora africana. Situar o debate entre esses dois campos é enriquecer e multiplicar as ações de reparação que devem ter o caráter interseccional, transversal e interdisciplinar.
É certo que existem diversos dispositivos que apontam para diversos âmbitos os direitos aos povos de terreiro. O que já existe deve ser aperfeiçoado e levado a um patamar superior que engendra concretude. As políticas públicas são criadas a partir de uma necessidade latente de grupos sociais e podem ser instituídas por meio de decretos, leis, portarias, dentre outros dispositivos ou não, mas é fundamental que haja rebatimento espacial, isto é, a materialização do que está escrito com forte participação de cada envolvido (a).
Jorge Oliveira, em um artigo publicado em 2020, pelo Núcleo Interdisciplinar de Meio Ambiente do Departamento de Direito da PUC-Rio, sinaliza que os princípios (vagos) assegurados em dispositivos legais não dispõem do segundo passo, isto é, da regra efetiva ou da consolidação das políticas nas cidades. É fundamental sublinhar que essa consolidação não passa somente pelos órgãos governamentais, mas pela importante atuação dos povos de terreiro.
Sugestiono, portanto, com base na premissa essencial do exercício cotidiano da reparação do processo escravista, a promoção de ações coordenadas, no princípio desse novo ciclo de 2023 para o aperfeiçoamento da luta por direitos dos povos de terreiro por meio do debate interrelacionado, a exemplo do que faz o Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana – FONSANPOTMA, entre as dimensões religiosa e étnico-racial (Igualdade Racial) que nos constituem e, também, da materialização das políticas públicas, rebatendo-as espacialmente.
Leonardo Mattos
Professor de Geografia formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), especialista em Cidades, Políticas Urbanas e Movimentos Sociais pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com ênfase sobre políticas públicas para os povos tradicionais de matriz africana e alternativas sistemáticas de (re)existências espaciais. [+ informações de Leonardo Mattos]
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