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O foco da intolerância está realmente fora de nossos muros?

Por: Alexandre de Oxalá


Foto: Clara Dias

27/06/2024 | 09:37


Atualmente, não há quem não tenha conhecimento de pelo menos um caso ou notícia acerca de episódios de violência contra religiosos de matriz africana ou contra as Comunidades Tradicionais de Terreiro, assim como infelizmente não são poucos os irmãos e irmãs que enfrentam diariamente esta celeuma, seja de forma ostensiva ou não, impactando em relações interpessoais e profissionais/acadêmicas, constituindo verdadeira forma de bullying organizado, sobre o qual as leis e resoluções ainda não conseguem atuar de forma plena, destarte esforços por parte de devotados políticos e segmentos da sociedade que não se furtam à defesa desta causa.



Na Wikipédia, define-se intolerância religiosa como, ipsis litteris, “um termo que descreve a atitude mental caracterizada pela falta de habilidade ou vontade em reconhecer e respeitar práticas e crenças religiosas de terceiros, ou a sua ausência”. Este conceito, mesmo retirado de uma fonte oficialmente não-acadêmica, traz importantes pontos para reflexão sobre a atual situação da intolerância religiosa para nós, praticantes de matriz africana, e até que ponto nós contribuímos para a perpetuação da mesma.


A vida em sociedade invariavelmente leva à criação de grupos, que formarão identidades que permitirão seu reconhecimento e a validação de suas práticas perante outros grupos, fortalecendo-se na demonstração de suas habilidades e competências, formando assim uma identidade social própria, fortalecida em si e capaz de interagir e dialogar com outros agentes sociais. Também assim funcionam as diferentes identidades religiosas, solidificando seu sistema de crenças perante seus adeptos através da transmissão de dogmas e preceitos, constituindo-se em verdadeiros polos de conhecimento e divulgação de seus predicados, adquirindo assim um estado de coesão social.


Atualmente, trazendo o verbete da página da web supracitada, podemos realmente afirmar que nossos adeptos reconhecem e respeitam as práticas de seus templos ou de outras comunidades-terreiro? Até que ponto as lacunas de aprendizado em várias comunidades não abrem brechas para a desinformação e enfraquecimento de nossa identidade sócio-cultural-religiosa, permitindo que nossas práticas tenham que se sujeitar a explicações advindas de outros ritos, apagando assim importante legado trazido pelos antepassados e codificado em nossa terra? É amplamente reconhecido que, onde há falta de informação, sobrevém a invenção, o que acreditamos que justifica boa parte da deturpação ritual observada entre nós e comentada em nossas “famílias de Axé”, muitas vezes em momentos de descontração ou conversas despretensiosas que ocorrem nos intervalos dos rituais em nossas casas.


A Sociologia, através do eminente Émile Durkheim, ensina que o que mantém o estado de coesão social em um grupo é o sentimento de solidariedade entre seus membros, compartilhando o interesse nos mesmos valores e estratégias necessárias à sobrevivência desse grupo. Aplicando esse ensinamento à nossa realidade de terreiro, questionamos: como pode haver solidariedade em pessoas que criam perfis e comunidades em redes sociais com a finalidade de apontar possíveis erros e posturas, distinguir negativamente sacerdotes e adeptos, inclusive usando aspectos da vida profana dos mesmos para reduzir sua credibilidade e promover o escárnio, quando não cometem verdadeiros atos de calúnia e difamação, estes inclusive considerados crimes em nossa legislação?


Há que se falar em solidariedade quando muitos de nossos irmãos e irmãs não são estimulados a estudar e entender nosso sistema de crenças e valores, bem como nossa teologia, levando ainda um número considerável de adeptos a buscarem legitimação em sacramentos de outras religiões para seus rituais de passagem em detrimento de nossas cerimônias, que são tão completas quanto a de qualquer outra crença? (salientando aqui o máximo respeito a todas as práticas religiosas em qualquer tempo).


Muito se fala hoje na deturpação de valores dentro dos terreiros, na exagerada importância dada a indumentárias, acessórios, paramentas e alegorias em detrimento do padrão simples de vestimenta, do respeito à hierarquia e disciplina, pilares de nossa religião em comum com a doutrina militar, da falta de importância que os mais novos dão aos rituais e cerimônias internas bem como à desvalorização dos ensinamentos dos que vieram antes de nós, contrariando o princípio da senioridade que norteia muitas de nossas práticas. Também condena-se a busca de informação por conta própria, rotulando-se muitas vezes, de forma informal, como “filhos do pai Google”, sendo esta via de aquisição de conhecimento condenada pela grande maioria de nossos adeptos, por razões as quais concordamos em grande parte. Porém, o que fazemos hoje para suprir as demandas por saber de uma geração cada vez mais conectada e contestadora, ainda que displicente e dispersa por vezes, bem como de toda uma população com acesso a uma grande quantidade de informação, de qualidade muitas vezes duvidosa, a qual muitas vezes é negado o esclarecimento dentro das Casas de Axé?


O célebre escritor, historiador e Ogan, Prof. José Beniste, em sua obra “Mitos Yorubás: O outro lado do Conhecimento”, traz um recorte do que poderia ser revisto e rediscutido em nossa comunidade, que vai ao encontro do que expusemos até o momento:

A atual prática religiosa liga as pessoas mais aos Terreiros do que verdadeiramente à crença divina. Poucos têm a essência religiosa. Tudo vive em função das regras do Terreiro, constituídas de frequência, ajuda e obrigações, com uma sintonia dirigida apenas ao Zelador ou Zeladora de Santo. Essa prática tem confundido as pessoas a crer-se religiosas, quando sua religio-sidade é apenas para o mundo, para seu dirigente e familiares de santo. Esquecem-se de ter a consciência de Deus no coração (Ifá Àyà)”.


Tivemos a oportunidade de ouvir e participar de diálogos com pessoas de notório saber e reputação inconteste dentro do culto onde apontam-se os momentos de falha e confusões litúrgicas, com a inevitável comparação com o passado; válida e oportuna, porém não vemos iniciativa concreta desses representantes ilustres de disseminar o conhecimento, o correto, para que haja as correções devidas e o fortalecimento de nossa religião. Um povo esclarecido é um povo firme, feliz e convicto de sua fé – com isso, será vestido com a armadura moral contra atos de intolerância. Não invalidamos ou diminuímos aqui os ataques externos que positivamente nos são infligidos diuturnamente, seja com paus, pedras ou projetos de lei frontalmente inconstitucionais, que devem ser combatidos com todo o arcabouço social e jurídico que dispomos, mas pensamos que sim, ainda podemos nos fortalecer muito enquanto grupo político-socio-educacional-religioso, ampliando as oportunidades de acesso ao diálogo salutar e quiçá alguma codificação escrita de nossa fé, para entregar nosso legado às gerações vindouras com a certeza de dever cumprido perante as Divindades.


Que nossos Deuses abençoem mais e mais os sacerdotes e sacerdotisas que trabalham incessantemente em prol da construção dessa coesão social, apresentando a religião de matriz africana para a sociedade e para o mundo, principalmente dentro do microcosmo de suas casas!


Axé a todos!



Átila Nunes - AxéNews

Babalorixá Alexandre de Oxalá

Alexandre de Oxalá é iniciado no candomblé desde 2009 pela Doné Cristiane de Oxum, neto do saudoso Doté Luís de Oya do Axé Omo Inã, de nação nagô-vodun em Anchieta, RJ; iniciado no Culto a Ọ̀runmila em 2012 pelo Babalawo Ifanimorá, Prof Fernandez Portugal Filho e sacerdote do Xwe Fa Sèn, em Nova Iguaçu (RJ).

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