Por: Joana Bahia
✅ 31/12/2024 | 09:00
É difícil precisar quando começaram as oferendas na praia a Iemanjá, certamente foi muito antes do crescimento dos populares nas praias e barcas para Niterói nos anos 40, pois antes disso a imprensa carioca divulgava a devoção a Iemanjá.
Imaginemos estarmos diante de uma cidade labiríntica, portuária, com um dos maiores quantitativos de escravizados, local de forte sociabilidade negra formada por diferentes grupos étnicos (SODRÉ, 2002). (SOARES, GOMES E FARIAS, 2005). O Rio de Janeiro foi constituído pelas conexões religiosas e étnicas de comunidades de africanos ocidentais de diversas origens e trânsitos nas últimas décadas do século XIX, levas migratórias de pessoas da África, e daquelas nascidas no Brasil, vindas de Salvador, e se instalando nas partes centrais da cidade: Praça Onze, Gâmboa, Santo Cristo, Saúde e Cidade Nova.
Os terreiros vão construir suas redes de comércio, sociabilidade e sucessão que estão se formando a partir na virada do século XIX para o XX, e aos poucos sairão das cercanias do centro da cidade, e vão se espraiando pelas novas áreas da cidade.
João do Rio na revista Kosmos, em dezembro de 1904, publicou matéria intitulada “O Natal dos africanos”, em que mostra a importância do mês de dezembro para se festejar vários orixás no candomblé (o termo é claramente mencionado no texto), dentre eles Iemanjá. Nesta matéria em especial, se apropria de termos próprios da religião (babalaôs, ebós e especifica os vários nomes dos orixás) e descreve os ritos de abate animal a Xangô e Oxum.
Em 1929, em uma reportagem intitulada “Mysterios da mandinga” do Jornal A Crítica, escrita por Francisco Guimarães, temos uma introdução à religião a partir da correlação dos orixás aos santos católicos, sendo Iemanjá relacionada à Nossa Senhora do Rosário. Nesta matéria, são citados vários alufás (pais de santo) como o velho Balthazar, Cypriano Abedé e como o meio político circulava por entre suas casas. Em 23 de abril de 1938, na revista Careta, Iemanjá é relacionada a curiosidade dos sociólogos que buscam fazer as coisas dos negros uma fonte de pesquisa ou então a tudo que se refere a Bahia, já citada como lugar primevo da religião. Ainda no mesmo ano, O Jornal relaciona as lendas dos “supersticiosos” como a de Iemanjá adquirir impressionante beleza na voz de Dorival Caymmi que se apresentará dia 19 de julho na Rádio Tupi.
Em uma matéria chamada Unidade e identidade nacional de 11 de setembro de 1938 ao invés de atribuir a língua como marcador de identidade nacional, o autor da matéria atribui a mania do brasileiro de crer, ou seja, de uma identidade formada pela crença religiosa. Em uma descrição dessa ideia, Xavier Marques mostra que: “o crente fetichista de hoje antes de fazer oferendas e levar sacrifícios a Iemanjá vai ouvir missa e rezar nos templos católicos”. Hábito descrito como nacional, ganhando destaque no decorrer dos anos 1940 e 1950.
João do Rio cita o “babaloxá da costa da Guiné” que atendia entre os casarios de Botafogo e Tijuca, indo em qualquer lugar da cidade onde tivesse serviço. Yvonne Maggie relatou em O medo do feitiço, de 1992, os casos nas áreas do Andaraí, no morro de Santo Antônio, em 1898, em Madureira e na rua do lavradio, em 1899, no morro de São Carlos, em 1930.
Vemos tanto nas crônicas de João do Rio quanto em Luís Edmundo, a presença das religiões afro-brasileiras no espaço urbano carioca, as flores eram ofertadas nas praias de Santa Luzia e do Russel, estas oferendas vão se expandindo para outras praias a partir da circulação da população negra em outras áreas da cidade. Este fato começa a ganhar destaque nos jornais a partir da década de 40, quando já aparecem as primeiras menções a presença de populares entre os últimos dias do fim do ano e o primeiro de janeiro na praia de Copacabana.
Neste primeiro momento não se nomeia claramente os praticantes, sendo os mesmos descritos sob o epíteto de “fetichistas”, linguagem que vai sendo substituída ao longo dos anos 50 pelos próprios termos da religião, em especial na linguagem umbandista (médiuns, cambonos, filhos). E neste momento já se fala em mistura de tipos, gentes e classes que começam a frequentar as oferendas sem qualquer vinculação a terreiro, colocando suas flores e suas esteiras de velas nas areias das praias. Muitos curiosos acompanhavam os espíritos que baixavam nas barcas para Niterói, riscavam seus pontos e atendiam aqueles que ia por flores na baía.
Popularização das flores dedicadas a Iemanjá se dá a partir da década de 40 com a presença maciça da umbanda, e também de outros segmentos afro religiosos nas praias de todo o estado do Rio de Janeiro. Iemanjá era visível na imprensa umbandista, e era alvo de ataques dos segmentos católicos conservadores preocupados com a circulação de católicos nas praias cariocas atentos aos ritos e oferendas frequentes na década de 40 e com o declínio do catolicismo descrito, em 1955, pro Thales de Azevedo na sua obra O catolicismo no Brasil, em que afirmava que a influência da igreja sobre as massas era fraca, e que as práticas populares seguiam crescendo.
Tancredo da Silvia Pinto, representante da chamada “umbanda Omoloco” foi um dos responsáveis pela sua viabilidade pública, e de tornar a presença afro mais frequente em vários eventos na cidade. Era sambista e líder religioso, e circulava entre o mundo político, religioso e musical, o que possibilitou a visibilidade do universo afro religioso.
No Diário de Notícias, 30 de Dezembro de 1973, página 7, Tancredo afirmou que: “A festa para Iemanjá nunca foi no dia 31 de dezembro. E muito menos, na praia. Para o povo de Umbanda, Iemanjá, a sereia do mar, era festejada aos sábados e apenas uma vez, de sete em sete anos, quando o último dia acontecia de cair num sábado que a gente da Umbanda ia para praia fazer a festa. De sete em sete anos, nada mais que isso. De 1920 para cá que é que se começou a ir à praia todos os anos para se festejar Iemanjá. Nós, os umbandistas, naquela época tínhamos de ir disfarçados fazer o festejo com violões e cavaquinhos. Essa misturação que vemos hoje nas praias é antiga e vem assim desde o comecinho, desde 1920. O povo da Umbanda, no entanto, sempre foi reservado, principalmente os crioulos velhos. Deixaram que as pessoas que nada tinham a ver com a história, que nada entendiam da religião se aproximassem da festa. Mas a gente sabia quem era e quem não era. Hoje, a misturação aumentou, a festa para Iemanjá está sendo cada vez mais evitada pelos umbandistas. Gente da umbanda mesmo pouco vai lá”.
Na maioria dos seus textos e livros Tancredo ressalta a importância do dia 15 de agosto, mas cabe lembrar que ele organizou um grande evento na virada do ano de 1957 para 1958 na Avenida Atlântica, no Leme em que reuniu umbandas, quimbandas e candomblé, sendo os pontos (corimbas) cantados em todo o trajeto.
Seja 15 de agosto, 31 de dezembro ou mesmo 2 de fevereiro, a estratégia de expandir de Tancredo da Silva Pinto_ ou posteriormente de outros ilustres líderes que ainda precisamos melhor estudar_ para as ruas da cidade juntamente com sambas e outras formas artísticas faz com quem a deusa yorubana se torne cada vez mais popular não apenas na cidade do Rio de Janeiro, mas paulatinamente em todo o pais.
Concordo com João Ângelo Labanca que mostra que Iemanjá nasce do encontro das lentas, sutis e pequenas devoções do dia a dia, e toma a cidade com suas águas, velas, bonecas, espelhos. Para ele, o aproveitamento das festas de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, das festas discretas e disfarçadas nas praias de Santa Luzia e da Glória, dos dias em que as baianas e os adeptos saíam com seus trajes brancos, vendendo seus doces e comidas em seus tabuleiros, vão aos poucos se manifestando de modo amplo, ocupando a cidade.
Tancredo Pinto e Byron Freitas mostram no livro As impressionantes cerimônias da umbanda, publicado em 1955, como no cotidiano da Omolocô havia uma regularidade de idas as cachoeiras, praias e rios. A circulação por estes espaços era parte da cosmologia afro religiosa, nesses lugares seus adeptos trocavam informações, conhecimentos e materialidades religiosas, e todo um modo de vida se constituía seja a luz do dia, seja sob os mantos de velas nas areias das praias.
Bibliografia:
BAHIA, Joana. O Rio de Iemanjá. Um olhar sobre a cidade e a devoção. Rio de Janeiro, Telha, 2023.
LABANCA, João Ângelo. Iemanjá no Rio de Janeiro. In: SELJAN, Zora A. O. Iemanjá e suas lendas. Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora, 1967. p. 73-83.
SOARES, Carlos Eugênio Líbano Soares, GOMES, Flavio dos Santos, FARIAS, Juliana Barreto. No labirinto das nações: africanos e identidades no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2005.
SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade. A forma social negro-brasileira. Salvador, Secretaria da cultura e turismo /Imago, 2002.
Joana Bahia
Professora titular da UERJ. Coordenadora do Nuer (Núcleo de estudos da religião). Autora do livro O Rio de Iemanjá: um olhar sobre a cidade e a devoção, publicado pela editora telha em 2023 e vários artigos sobre religiões afro brasileiras, em especial Omoloco, umbanda, candomblés, Iemanjá e expansão das religiões afro brasileiras no mundo... [+ informações de Joana Bahia]
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