O Silenciamento dos Atabaques: A Perseguição Histórica e Atual aos Povos de Terreiro
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Por Ana Paula Miranda

✅08/04/2025 | 07:54
Introdução
Em dezembro de 2024, o Ginga organizou em parceria com a Coordenadoria de Promoção da Equidade Racial (COOPERA), da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPE-RJ), e a Defensoria Pública da União (DPU), o encontro “Entre o som e o silêncio: a lei e o direito dos povos de terreiro”. O debate foi a criminalização do toque dos atabaques, que são resultado da imposição de limites sonoros durante os cultos por parte órgãos públicos.
Mas essa perseguição não é nova. Desde o século XIX, os tambores sagrados do Candomblé e de outras religiões de matriz africana são alvo de proibições e repressão
Uma História de Silenciamento
Na Bahia, no começo do século XIX, como represália à Revolta dos Malês ocorreu a proibição de importação de atabaques de guerra (bàtá koto), em 1835, que desempenharam papel relevante nos levantes como instrumento de comunicação.
No início do século XX, os jornais e autoridades revelavam o ódio às práticas das religiões de matriz africana. O maior ataque a terreiros da história, conhecido como Quebra de Xangô, em 1912, resultou na destruição de terreiros de Maceió, que teve como consequência a mudança de práticas religiosas, que passaram a ser conhecidas como Xangô Rezado Baixo, por não se tocar mais os atabaques.
Durante o Estado Novo (1937–1945) e a Ditadura Militar (1964–1985), a perseguição se intensificou no país. Os atabaques foram novamente proibidos por meio da utilização da legislação penal e do controle policial, bem como do Serviço de Censura de Diversões Públicas. As perseguições se davam por motivos religiosos e políticos, já que o candomblé e a umbanda eram reconhecidas como formas de resistência cultural negra.
Dois documentos produzidos pela Seção de Fiscalização do Culto Afro-brasileiro, da Delegacia Especial de Jogos e Costumes, subordinada à Secretaria da Segurança Pública da Bahia, nos anos de 1960, foram encontrados durante a organização do Memorial de Mãe Menininha do Gantois, em 2024. Um deles trazia um título curioso – “Permissão grátis”. Mas o que se permitia? A realização de “festas” no terreiro, em datas pré-determinadas, mas só poderiam ocorrer mediante as seguintes proibições: consumo de bebidas alcoólicas, presença de menores e uso de atabaques após certo horário.
A Perseguição Continua: Casos Recentes
Infelizmente a descoberta não corresponde a uma relíquia do passado. Entrevistas realizadas por pesquisadores do grupo Ginga UFF tem encontrado situações semelhantes acontecendo até hoje. Até hoje no Maranhão se cobra “taxas” para a realização de festas em terreiros, por meio de um decreto estadual de “taxa de fiscalização do poder de polícia”. Esta ação é feita em São Luís pela Delegacia de Costumes e, nas demais cidades do Estado, pelas Delegacias de Polícia locais. Jorge Alberto Mendes Serejo analisa como os registros de ocorrência policiais de hoje, no Maranhão, são feitos com as mesmas argumentações das denúncias do século XIX.
Em Aracaju (SE) temos notícia de um pai de santo que teve o atabaque apreendido pela Polícia Militar, cuja história foi retratada no filme Caminhos de Xangô. Na mesma época ocorreu a condenação, em Olinda, de um pai de santo por perturbação de sossego alheio. O juiz do Juizado Especial Criminal de Olinda decretou a pena de 15 dias de prisão, com a possibilidade de conversão em prestação de serviços à comunidade.
Em janeiro de 2024, uma cerimônia religiosa foi interrompida e o pai de santo foi levado no camburão até a Delegacia Seccional de Polícia de Franca, em São Paulo. Os policiais alegaram atender uma ocorrência de “perturbação do sossego”.
Por Que os Atabaques São Tão Perseguidos?
São muitos os casos de terreiros sendo fechados por meio de ações policiais ou sendo autuados pelo Ministério Público, a partir de uma interpretação de que o som dos atabaques seriam “poluição sonora” e/ou perturbação do sossego. O modo como essas ações têm acontecido representa uma violação flagrante ao direito à liberdade de culto, previsto na Constituição Federal, e ao respeito às tradições das religiões de matriz africana.
Além da apreensão de atabaques, ocorrem determinações de que os cultos ocorram com apenas um atabaque ou por meio de palmas, num flagrante de intervenção na liberdade de culto, ao não se compreender que o atabaque não é apenas um instrumento de percussão. Afinal, eles correspondem a divindades. Possuem nomes próprios, são sacralizados, vestidos e alimentados, e apenas algumas pessoas estão autorizadas a tocá-los, com as mãos ou baquetas, conforme as tradições.
Como explica o pesquisador Ângelo Nonato Natale Cardoso, em sua tese de doutorado “A linguagem dos tambores”, o toque dos atabaques é uma forma de comunicação ancestral, essencial para os rituais. Seu silenciamento é uma tática de apagamento cultural.
O Direito à Liberdade Religiosa e o Combate ao Racismo
A imprensa e o direito tem apresentado um papel ambivalente no que diz respeito aos povos de terreiro. Podem servir como ferramentas de opressão, como ocorreu nas acusações de charlatanismo, que resultou na apreensão de objetos religiosos em todo o país. Como podem servir para denunciar arbítrios e funcionar como defesa desses direitos, principalmente após a promulgação da Constituição de 1988, da Lei Caó, da Convenção 169 da OIT, do Decreto 6040/2007 e do Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. 12.288/10).
Podemos afirmar, sem medo, que desde o século XIX, os atabaques são perseguidos oficialmente. As acusações de barulho e as alegações de perturbação de sossego são dirigidas apenas aos terreiros, não afetando outros templos religiosos ou recintos comerciais, caracterizando-se de modo evidente como uma neocolonialidade jurídica. A alegação de crime ambiental ou de perturbação de sossego se tornou o “novo” instrumento de guerra dirigido aos terreiros.
O resultado do evento coordenado pelo Ginga e as Defensorias, diante das constantes comunicações de persistentes silenciamentos dos atabaques, é um documento, o OFÍCIO CIRCULAR CONJUNTO DPERJ/DPU - Nº 02/2024, que trata de recomendações e orientações sobre a imposição de limites sonoros durante cultos, liturgias e manifestações do Povo de Terreiro e das comunidades tradicionais de matriz africana. O objetivo não é apenas denunciar o racismo religioso que explicitamente atinge os povos de terreiro, mas principalmente fornecer embasamento legal que assegure o direito à identidade étnico-religiosa no Brasil. Fruto do debate promovido pelo Ginga, este documento traz recomendações contra a criminalização dos atabaques, incluindo:
Respeito à liturgia dos povos de terreiro;
Fim da aplicação seletiva das leis;
Sensibilização de agentes públicos.
Conclusão: O Som que Insiste em Resistir
A história mostra que o silenciamento dos atabaques nunca foi motivada pelo "barulho", mas sobre o desejo de controle como uma forma de expressão do racismo. A luta dos povos de terreiro continua, agora com mais ferramentas jurídicas – mas ainda enfrentando o mesmo preconceito do século XIX. Apesar das conquistas, a luta pela liberdade de culto e o direito de tocar os atabaques permanece urgente.
Referências:

Ana Paula Mendes de Miranda
Doutora em Antropologia (USP); Professora da Universidade Federal Fluminense; Coordenadora do Ginga; Pesquisadora do INCT Ineac.
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