Por: Iya Paula de Odé
19/11/2023 | 15:37
Sou iyalorixá há 24 anos. Vinte e quatro anos jogando búzios e observando, através dos meus olhos espirituais e conhecimento adquirido, as tendências e decorrências sociais. É nítido o quanto a sociedade está perdida com o tempo e o movimento. As pessoas têm paralisado em meio a tanta correria. São tantas demandas, tantas responsabilidades, que as pessoas têm negligenciado o seu próprio tempo. E quando a vida dá uma chacoalhada, nos coloca de cara para o gol, vem o medo. Medo de avançar, medo de não dar certo. Com isso, vamos deixando os sonhos pra depois.
Tenho 54 anos. Entre tantas atribuições sociais, pessoais, profissionais e religiosas, ainda sou graduanda no 5º período do Serviço Social. Ainda que eu entenda que o justo era cada brasileiro ter tempo, dinheiro e, sobretudo, qualidade no ensino público para competir com qualquer aluno privilegiado da rede privada, tenho o maior orgulho de minha trajetória de ter precisado retornar às aulas diversas vezes. Isso significa que ainda estou no páreo. Isso significa que dei o tempo necessário para resolver outras prioridades. Para nós, mulheres do corre, bem a gente assobia ou chupa cana. Para estudar e correr atrás do sustento é preciso mais que força de vontade. É preciso oportunidade que transite entre tempo, grana e movimento.
Lembro bem, em 2010 eu atendia com jogo de búzios, onde eu morava, na Penha, RJ. Estava há tempos querendo voltar para a universidade, mas não conseguia parar para estudar como deveria, com afinco. O tempo que me sobrava era pra eu estudar com meu filho, na época com mais ou menos 9 anos. Pois bem, surgiu uma vaga na portaria do prédio em que eu morava. Conversei com a síndica e lá fui eu trabalhar na portaria no período de 12h/36h. O tempo que eu ficava abrindo e fechando o portão, entre um carro e outro, uma entrega de correspondência e outra, eu estudava, sentadinha na cabine.
Fiz minha inscrição para o Enem. No dia da prova, eu era provavelmente a mais velha da sala. Confesso que deu um medo e insegurança também, mas, por cima do medo, a coragem. Passei com mais de 700 pontos. A vida me levava simultaneamente para outros caminhos, mas foi ali que eu tive a certeza de que eu era capaz. Mesmo depois de mais de 20 anos fora das salas de aula, se eu tivesse tempo, e concentração e oportunidade, eu conseguiria. Isso me deu força para saber que eu podia ser o que eu quisesse ser, na hora que desse pra ser. Era o meu tempo. E esse tempo chegou mais uma vez.
Qual é o tempo ideal para começar? Para continuar? Para recomeçar? O tempo ocidental veio pra roubar, matar e destruir os sonhos dos menos favorecidos. Fui mãe aos 33 anos, o pai do meu filho é 10 anos mais novo do que eu e, aos 54 anos, retorno para a academia.
Precisamos respeitar o nosso tempo em primeiro lugar. Esse é um ensinamento precioso do povo iorubá. Se não queremos adoecer no mundo ocidental, temos que ressignificar o nosso tempo. O Odú Osá Gulejá fala isso. É o odu do pulo do sapo. O sapo tem que saber o tempo certo para pular para que não seja comido pela cobra. Quantas vezes nas nossas vidas tivemos que ser precisos na hora de agir? Às vezes o tempo certo é depois de muito tempo ou, quem sabe, o tempo certo seja agora, já, imediatamente. Respeitar, acompanhar e entender o nosso tempo e as oportunidades que atravessam as nossas vidas é fundamental.
Eu fui abian dos 10 aos 20 anos. Me tornei yalorixá aos 30 anos. Meu filho nasceu no candomblé. Ou seja, ele foi abian desde que nasceu até os 10 anos, quando se iniciou. Ele se tornou babalorixá aos 17 anos. Ele, aos 17 anos, tinha mais conhecimento do que eu aos 30. Conto isso para que vocês entendam que, na visão iorubá, o tempo não se resume a dias, horas, meses, anos. Mas se trata do tempo necessário, do tempo circunstancial, do tempo divinizado, do tempo oportuno, do tempo de vivência. O tempo iorubá é agora!
Para aqueles que se abatem ao ouvir comentários desanimadores, vexatórios, eu deixo aqui para reflexão um itan em Owonrin, que eu gosto muito. Fala do gato preto. Gato queria atravessar a cidade das grandes mães. Todos os animais zombaram do gato. Diziam que ele era doido, que não iria conseguir chegar ao seu destino. Todos duvidaram do gato. Gato fez ebó. Gato não escutou os animais e seguiu em frente. Gato entrou na cidade temida. Com o poder da magia que o gato usou, o gato ficou preto. Gato caminhou lentamente. As Grandes Mães perceberam a presença do gato através dos olhos dele. Elas ficaram admiradas com a ousadia do gato e se encantaram pelos seus olhos. Gato foi poupado e passou a ser um animal sagrado para Elas.
Quantas vezes nós nos abatemos com comentários desumanos e cruéis e desanimamos? Precisamos ser como o gato do itan, nos apropriar da magia para nos transformar, ousar para vencer e, sobretudo, não dar ouvidos a quem não acredita nos nossos sonhos, nossos desejos.
Acreditar que nossos sonhos podem virar realidade, sem titubear, é um exercício que deve ser feito diariamente. De fato, é difícil, mas o mais difícil é ter coragem para seguir em frente. Mas não se esqueça: é preciso estar preparado para receber. Pior do que não ter, é ter e perder. Prepare-se espiritualmente assim como o gato se preparou. Prepare o seu ori para não aceitar palavras que te desanimam. Prepare seu solo, seu caminho, sem criar atalhos para não perder o foco. Crie as possibilidades, concentre e faça. Para finalizar, eu digo e repito: gato preto venceu quando duvidaram dele, você também vencerá. Gato também teve medo, mas ele superou. E se você ainda tem medo, vá com medo mesmo!
Iya Paula de Odé
Iyalorixá Paula de Odé, idealizadora e presidente do Instituto Ọṣẹ Dúdú, Presidente do Afoxé Ómó Ifá - RJ, ativista, palestrante e pesquisadora do grupo Africanias da escola de música da UFRJ
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