Por: Babalorixá Márcio de Jagun
15/02/2023 | 09:46
A cada música sagrada entoada, a palavra faz com que os sons despertem no
indivíduo sua sensibilidade, suas emoções. Afinal, para o ioruba os sentimentos, as
emoções e a natureza desses sentires, é sagrada. Assim, a música desperta esse
potencial.
O cântico reproduz o contentamento daqueles que vêm o arco íris (Òṣùmàrè)
sobre a casa, cobrindo, abençoando os habitantes daquele reduto.
A decodificação da canção africana para o sistema ocidental de representação
musical, como fez Barros 1 , em seu livro O Banquete do Rei, é interessante, pois revela o
diálogo possível entre métodos distintos educacionais. A partitura é capaz de identificar
ambos os modelos. Além disso, atesta que, mesmo com modus operandi diferentes, os
iorubas também compõem cantam, encantam e educam através das notas e letras
musicais.
Em sua página no Instagram 2 , Leandro Encarnação da Mata (Bàbá Ẹgbẹ́ 3 da
Casa de Oxumarê), reproduz as palavras de Pai Erenilton, um antigo e já falecido
alágbè 4 do mesmo terreiro: “Um dos maiores mestres do Candomblé, percussionistas,
sacerdotes com poder de invocar as divindades por meio do som e do cântico, Mestre
Erenilton, Pai Erenilton, ẹlẹ́mọ̀ṣọ́ 5 da Casa de Oxumarê; ele dizia que atabaque era piano. Que muito além de emitir o som, tinha que ter a maestria, o compasso de replicar
o som da natureza.”
Os àwọn orin (cânticos) são mais do que um conjunto de acordes, rimas e ritmos
(como se fosse pouco). Eles são senhas que abrem um portal mítico de acesso entre
homens e deuses. A partir do canto, vivos e não vivos se reencontram, dançam, cantam,
atuam uns com os outros, uns pelos outros. E esta fusão mágica se dá no tempo, no
corpo, na alma. São muitos os ritmos sacros utilizados nos terreiros jêje-nagô. Entre
eles: Àgẹ̀rẹ̀, Àhamúnya, Àlùjá, entre outros.
Os instrumentos musicais de percussão, usados no acompanhamento dos orin,
também são inúmeros. Entre eles: o sino (agogô); os atabaques convencionais de
Candomblé (ìlù), atabaque de ifá (àràn) - tambores rituais de Ifá batidos com as mãos
ou varetas, atabaque de gẹ̀lẹ̀dẹ́ (bàtáa-koto) - tambor utilizado na sociedade Gẹ̀lẹ̀dẹ́ 6 ,
nos rituais desta sociedade secreta; o àyàn - este é o nome de um tipo de tambor; ṣẹ̀rẹ̀,
ṣẹ̀kẹ̀rẹ̀ – instrumento de percussão elaborado a partir de uma cabaça inteira, de pescoço
longo, usada como chocalho. Esta palavra denomina também uma das ferramentas
rituais do òrìṣà Ṣàngó que é utilizada diretamente por este, ou por seus adeptos, para
invocá-lo representando o rugido dos trovões.
Por meio de seus cânticos (orin), os iorubas subvertiam o padrão musical da
corte. Os instrumentos musicais de percussão, faziam soar os ritmos da sua devoção.
Suas coreografias sincronizadas narravam a saga dos seus deuses, seus feitos e
regências. Eram homens invocando deuses, dançando e cantando com eles. Eram os
seus sons, os seus toques a sua bossa. Com os orin, os iorubas cantaram em sua língua,
dançaram em seus ritmos, usaram sua música rasgando o sistema e escrevendo com os
tambores suas pautas musicais. Não usavam pianos, harpas, nem violinos. Faziam soar
seus atabaques, caxixis e agogôs. Nem polca, nem valsa, nem nada que o valha...
Dançavam àlùjá, àgẹ̀rẹ̀, ìlù... Suas cabeças sabiam o que queriam. Dançavam no ritmo
de seus corações. Quem disse que seus corpos tinham donos, ou regras, ou padrões? Ali,
na terra batida, em meio à poeira que subia enquanto os negros dançavam, seus corpos
só obedeciam à música.
A cultura ioruba, contemporaneamente, dentro ou fora dos terreiros, dança
coreografando a saga de seus antepassados que se tornaram deuses. Seus gestos,
mostram força, doçura, dor, superação, acolhimento, sensualidade.
Cada divindade, tem sua personalidade expressada em ritmos que revelam sua
vibração, o seu elemento da natureza. O ìjẹ̀ṣà de Ọ̀ṣùn, é o transcurso das águas dos
rios, beijando as pedras, acariciando a margem, remansando os homens. O ọpanijẹ de
Ọmọlu, é misterioso, cadenciado no suspense daquele òrìṣà que esconde o corpo com as
palhas.
Deuses dançam junto com seus devotos, vibram e fazem vibrar. A saga de orixás
milenares é reconstituída no tempo presente de forma operística. As divindades
excorporam 7 suas energias de dentro dos corpos humanos e harmonizam-se em espaços
sócio/religiosos/educacionais.
Com os cânticos, os iorubas ensinam canto, música, dança, percussão.
1 BARROS, José Flávio Pessoa de. O banquete do rei... olubajé uma introdução à música sacra afro
brasileira. Rio de Janeiro: Novo Milênio, 2000, p. 151.
2 https://www.instagram.com/tv/B6HQe0wnBtQ/?igshid=1caruh72mzbmd. Consultada em 22/12/2019.
3 Bàbá ẹgbẹ́: 1. s. líder de uma sociedade; 2. s. cargo masculino no Candomblé cuja atribuição é auxiliar o
bàbálórìṣà ou a ìyálórìṣà na gestão do Terreiro. O primeiro Bàbá Ẹgbẹ́ de que se tem registro no Brasil,
foi Manoel Cerqueira de Amorim, na Roça do Cajá - BA. Na Casa de Oxumarê - BA, um dos mais
tradicionais Terreiros do Brasil (BA), desde sua fundação na primeira metade do Século IXX, este posto
foi exercido por apenas duas pessoas: Silvanilton Encarnação da Mata (atual Bàbálórìṣà do Ilé, conhecido
como Bàbá Pèsè de Òṣùmàrè) e por Leandro Dias (atualmente). O bàbá ẹgbẹ́, muitas vezes é ainda
incumbido do culto aos ancestrais daquele Àṣẹ, componentes da sociedade Ẹgbẹ́ Ọ̀run. Em algumas
Tradições, é cargo no Candomblé dado ao herdeiro, ou sucessor do ẹgbẹ́.
4 Alágbè: 1. s. cargo masculino conferido no Candomblé a um ọ̀gá que passa a ser responsável por entoar
os cânticos sagrados e a tocar os instrumentos de percussão durante os rituais; 2. s. aquele que utiliza a
cabaça como instrumento musical de percussão. Lit. “o senhor da cabaça”. Ọ̀gá, ou Ọ̀gán: 1. s. tocador
dos atabaques rituais no Candomblé. Cargo masculino conferido nos Candomblés a homens que não
entram em transe mediúnico. Este cargo é conferido pelo òrìṣà em transe no sacerdote(isa), ou em outro
membro do Terreiro que possua posição hierárquica de importância no Ilé.
5 Ẹlẹ́mọ̀ṣọ́: 1. s. aquele que aprecia belas roupas e adornos; 2. s. cargo conferido no Candomblé relativo ao
culto a Òṣàgiyán; 3. s. uma das qualidades de Òṣàgiyán no Candomblé.
6 Gẹ̀lẹ̀dẹ́: sociedade feminina de culto às Mães Ancestrais (Ìyá mi Òṣòrọ̀ngà). Designa ainda as máscaras
utilizadas neste culto.
Trecho do livro: A Sala de Aula não Cabe no Mundo: Compreendendo a Nagologia Educacional e suas Metodologias Singulares (Litteris, 2021).
7 Proponho o neologismo excorporar, em oposição ao fenômeno mediúnico denominado incorporação, no
qual os adeptos entram em transe a partir da ideia de uma força externa ao seu corpo. Logo, excorporar
seria o movimento oposto: fazer brotar do interior do indivíduo.
Babalorixá Marcio de Jagun
Márcio de Jagun é escritor e dicionarista especializado em gramática ioruba, autor de sete obras publicadas. Dentre elas, Orí a Cabeça como Divindade (Litteris, 2015).
Contato: ori@ori.net.br
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