Por: Pai Luiz Felipe Stevanim
25/01/2023 | 14:55
Os brados dos Caboclos ecoavam nos terreiros de todas as bandas, em homenagem ao orixá Oxóssi, senhor da floresta, no mesmo final de semana de janeiro em que o grito de socorro do povo Yanomami despertou a atenção da sociedade brasileira. Imagens de crianças e idosos em estado grave de desnutrição e fome vieram à tona como denúncia de um genocídio anunciado na maior Terra Indígena do país. O avanço do garimpo ilegal sobre o território sagrado deste povo, impulsionado durante o governo de Jair Bolsonaro, deixou um rastro de morte e destruição: os números do Ministério da Saúde falam em 500 crianças mortas por pneumonia, malária e outras doenças.
O que esta tragédia sofrida por um povo indígena da Amazônia provoca em nós, umbandistas e simpatizantes? Sempre é tempo de lembrar que a base da Umbanda é o culto a ancestrais indígenas e africanos: o Caboclo é quem nos acolhe e orienta quando buscamos um terreiro para a cura dos nossos problemas do corpo e da alma e espanta as nossas mazelas com o sopro de sua fumaça e o macerado de suas ervas. São o Pai Caboclo e a Mãe Cabocla que, tantas e tantas vezes, tomam conta do nosso caminhar pelo mundo e nos conduzem ao encontro de nossa essência espiritual que vibra em sintonia com as forças da natureza.
E o quanto nós, que cultuamos Caboclo, ancestral indígena, somos conscientes da luta dos povos originários para sobreviver ao extermínio e ao apagamento de sua cultura há cinco séculos neste país que chamamos Brasil? Nossos corações de fato estão em sintonia com a raiz indígena ou bebemos desta fonte apenas para satisfazer nossa espiritualidade pessoal, de modo egoísta e sem responsabilidade?
Em princípio dos anos 1990, a voz do xamã yanomami Davi Kopenawa já alertava para a destruição da floresta e consequentemente da vida de seu povo pela expansão desenfreada de garimpeiros em suas terras, trazendo consigo a ambição e doenças como a malária e o sarampo. “O que fazem os brancos com todo esse ouro? Por acaso, eles o comem?”, questionou o grande curandeiro da floresta, durante o Tribunal permanente dos povos sobre a Amazônia brasileira, em 1990. Em seu livro inebriante “A queda do céu”, escrito com o antropólogo Bruce Albert, Kopenawa descreve a devastação provocada pelos brancos na vida do povo Yanomami: ainda nos anos 1960, com a chegada de missionários evangélicos estrangeiros, que tentavam converter os indígenas à fé cristã a todo custo; e nos anos 1980, com a explosão do garimpo ilegal e todas as suas consequências para os rios, a mata e os próprios humanos que habitam aquele ecossistema.
Para os povos indígenas, a floresta e sua própria vida estão umbilicalmente ligadas, a tal ponto que a devastação ambiental condena a própria existência humana. Muitos se questionam, com o coração endurecido, como podem os indígenas Yanomami sofrerem com a fome em um território tão rico: desconhecem completamente a forma nociva como o garimpo contamina os rios de onde eles tiram a pesca para subsistência e a água para se banhar, preparar os alimentos e saciar a sede. Já estive na Amazônia e testemunhei comunidades cercadas por alguns dos maiores rios do planeta sofrerem com a falta de água potável pela contaminação causada pelo garimpo.
A floresta é fonte da espiritualidade para os Yanomami, como afirmei em meu livro “Terreiro de Caboclo: A raiz indígena na Umbanda”, inspirado pelo Caboclo Sete Flechas. Os espíritos chamados de xapiri por este povo amazônico e invocados pelos xamãs habitam os rios, o vento, a chuva, o interior da terra, as folhas e inclusive são os próprios animais, considerados ancestrais sagrados dos humanos. Kopenawa nos ensina que esses seres trabalham na floresta, “nas costas do céu e na terra, em todas as direções, inumeráveis e potentes, para nos proteger”. A floresta está viva e concede vida — e, portanto, a sua degradação não condena apenas a existência física, mas a própria espiritualidade ancestral dos povos originários.
A tragédia dos Yanomami repete o genocídio sofrido por outros povos indígenas ao longo de cinco séculos, provocado pela ambição desmedida dos ditos “civilizados”. Kopenawa afirma que os brancos, “por quererem possuir todas as mercadorias, foram tomados de um desejo desmedido. Seu pensamento se esfumaçou e foi invadido pela noite”. Tomados pela ambição, “os brancos se puseram a cortar todas as árvores, a maltratar a terra e a sujar os rios”, declara em seu livro “A queda do céu”. O título da obra fala de uma profecia apocalíptica: quando o último xamã for morto e o povo da floresta estiver extinto, o céu não será mais sustentado pela força dos espíritos e caíra sobre a cabeça dos humanos.
As palavras de Davi Kopenawa são um chamado para refletirmos sobre nossa relação com a Sagrada Mãe Terra. E vou além: para nós, umbandistas, elas são um apelo à nossa consciência sobre como de fato nos relacionamos com as questões indígenas. Será que honramos o legado dos Caboclos? Ou viramos as costas para as raízes ancestrais dos povos que nós mesmos cultuamos com os nomes de Caboclo Tupinambá, Aimoré, Cobra Coral, Sete Flechas e tantos outros?
Os povos originários têm uma luta permanente por direitos, em que a demarcação de suas terras é um passo necessário não só para a sua sobrevivência, como para o equilíbrio de todo o planeta. Afinal, são os verdadeiros guardiões dos ecossistemas ainda preservados, mas que seguem cotidianamente atacados pela ambição humana e pelo descaso governamental.
A luta dos Yanomami e de outros povos originários têm tudo a ver com a Umbanda, pois como afirma outro sábio indígena, Ailton Krenak, “o futuro é ancestral”. É preciso honrar a nossa espiritualidade ao nos dedicarmos a conhecer e a respeitar as vozes dos povos da floresta, pois não sobrevivemos sem a Mãe Terra. Esses povos guardam também saberes espirituais em profunda conexão com as forças da natureza — são ensinamentos que se manifestam nos terreiros pelas mãos dos Caboclos. Em verdadeiro canto de fé, Kopenawa afirma sobre os espíritos: “(...) vamos continuar fazendo dançar as suas imagens e defendendo suas casas, enquanto estivermos vivos. Somos habitantes da floresta”. Que nosso coração esteja atento a este chamado.
Pai Luiz Felipe Stevanim
Luiz Felipe Stevanim é sacerdote de Umbanda e dirigente da Casa da Fraternidade Aldeia de Luz, terreiro fundado em 2017, atualmente situado no Rio de Janeiro. É autor do livro “Terreiro de Caboclo: A raiz indígena na Umbanda”, sob orientação do Caboclo Sete Flechas. Filho de Oxóssi e Oxum, busca vivenciar a religião como aprendizado comunitário e ancestral. [+ informações de Luiz Felipe Stevani]
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