Por: Pai Caio
✅ 16/12/2024 | 05:45
Abandonando a idealização da fábula das "três raças", que muitas vezes apresenta uma narrativa enganosa sobre a formação do Brasil como uma simbiose harmônica entre europeus, africanos e indígenas, é essencial destacar a rica complexidade do encontro triétnico afro-diaspórico. Durante mais de quatro séculos, essa interação entre etnias africanas distintas, que partiu do porto de Luanda, em Angola, e chegou à Pedra do Sal, no Rio de Janeiro, foi fundamental para moldar a identidade brasileira contemporânea, que hoje nos distingue no cenário global. Nossas festas, giras, xirês e ajodúns são os meios pelos quais transmitimos nosso conhecimento e nutrimos a esperança de um Brasil mais inclusivo e menos racista.
Os três principais grupos africanos que aportaram no Brasil durante o período colonial foram os Bantus, os Fons e os Iorubás. Este último foi responsável por trazer uma série de contribuições significativas, entre elas os Orixás, Igbás, documentos escritos e rituais consolidados, oriundos da atual Nigéria.
Os Bantus, os primeiros a pisar em solo brasileiro, ainda no século XVI, vieram de regiões que hoje correspondem ao Congo e Angola. Esse grupo teve um papel crucial no desenvolvimento da identidade afro-brasileira, deixando um impacto duradouro na língua, na culinária, na arquitetura e nas práticas religiosas. Embora o processo de "nagotização" tenha buscado um purismo nas tradições iorubás, foram os Bantus que estabeleceram as bases para o florescimento do Candomblé e da Umbanda, expressões culturais, sociais e espirituais das comunidades de herança afro-diaspórica.
O Carnaval, portanto, representa vibrante manifestação desse legado ancestral, se consolidando como a principal celebração cultural das Américas e continuando a funcionar como um instrumento de preservação e resistência dos nossos saberes. Embora frequentemente invisível ou disfarçado aos olhos da branquitude, o Carnaval se revela uma tecnologia ancestral que promove um espaço para discussões necessárias, muitas vezes consideradas tabus ao longo do ano. Durante a festividade, essas questões emergem em destaque nas manchetes e nos noticiários. Como o caso da cosmovisão da etnia Fon através da vitória da Viradouro com a grande serpente Dan e os Voduns que no Brasil conhecemos na nação de Candomblé Jejê, oriundos do antigo reino do Daomé, atual Benin.
As maiores festividades ao ar livre do mundo são, de fato, expressões e tecnologias desenvolvidas nos terreiros, funcionando como faróis que apontam para tempos melhores e presságios positivos. O réveillon de Copacabana, por exemplo, é um legado de Tata Tancredo e suas celebrações em homenagem a Iemanjá, marcadas pelo uso de roupas brancas e pelo ritual de dar sete pulos nas ondas. Ele, acompanhado de figuras como Tia Ciata, Zé Keti e Ismael Silva, abriu caminho para reescrever as narrativas de um povo resiliente na famosa avenida Darcy Ribeiro, o chão da Sapucaí.
Este mesmo Carnaval já consagrou o Orixá Exú e agora, é a vez de celebrarmos os Nkises Pambu Njila e Matamba na passarela dos deuses. Nossas divindades narradas e apresentadas ao mundo por meio da Sapucaí não saíram de contos de fadas. Orixás, Voduns e Nkises remontam a história da formação do universo e, portanto, da humanidade.
Exú, representando o panteão de venerados pelos Iorubás, está associado a nação Ketu do Candomblé. Por outro lado, Pambu Njila, uma divindade bantu, é o princípio cósmico que se sincretiza com Exú pelos Nagôs, guardião das entradas e portões, comunicador que celebra as festas. Pambu Njila é conhecido por sua preferência por farofa de dendê e galo preto, e sua multiplicidade de símbolos inclui a genitália. A expressão "Pombagira", o nome de uma família de entidades na Umbanda, surgiu a partir da corruptela do nome desse Nkise e sua associação com Exú.
A própria palavra "Umbanda" tem raízes no quimbundo, língua falada em Angola, significando "a arte de curar". É dessa cultura frequentemente esquecida que derivam ritmos como o samba, iguarias como o pé-de-moleque e a feijoada, além de tradições como a capoeira e o jongo, que permeiam nosso idioma falado, cantado e rezado.
Não é surpresa que esses temas ganhem destaque nos concursos e rodas de conversa, tanto nas academias quanto nos bares. Em um mundo onde os recursos naturais e as relações sociais se deterioram, é prudente buscar nos ancestrais segredos de sobrevivência.
As escolas de samba têm um papel vital no processo civilizatório. Elas reapresentam o que foi invisibilizado e distorcido pelo pensamento colonial. Essa mentalidade ainda é predominante nas instituições e também influencia as relações sociais. A GRES Mangueira, por exemplo, convida, com seu enredo para 2025, a revisitar a chegada de nossos ancestrais a esta terra e os saberes que compartilharam, buscando soluções e respostas para crises contemporâneas, como a fome, a guerra e a urgência climática.
Que Pambu Njila, Matamba e N’Zazi sejam por nós!
Mukuiu, Kolofé e Motumbá!
Pai Caio
Caio Bayma nasceu na Baixada Fluminense, Nilópolis, foi morar no Morro dos Macacos por conta da proximidade com o trabalho, faculdade e atuação no movimento social, hoje reside no centro do Rio de Janeiro. Graduando em Matemática, integra a equipe do Observatório Adolescente (OPPA /UERJ) no eixo de religiosidade e atuou como primeiro extensionista na Superintendência de Saberes Tradicionais da UFRJ. [+ informações de Pai Caio]
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