Por: Mãe Lelê
24/04/2023 | 17:50
Antes de abordar especificamente a respeito do hino da Umbanda, é preciso compreender a Umbanda- religião de matriz africana- como símbolo de resistência política e cultural. É preciso saber que, em sua constituição, ela traz em si a ressignificação de práticas religiosas do povo africano (banto e iorubá), dos povos originários do Brasil e as práticas religiosas dos portugueses invasores/ colonizadores. Há também outras influências que constituem a Umbanda, como o espiritismo “kardecista”, feitas por uma classe média branca no século XX, e, ainda, outras influências orientais. Cabe destacar que a Umbanda carrega as divergências regionais, culturais e sociais que existem na sociedade brasileira, tornando-a, dessa forma, uma religião heterogênea e multifacetada. É certo, também, que considerar o contexto sócio- -histórico, político e ideológico da produção do discurso sobre Umbanda nos fará entender como o hino da Umbanda foi elaborado.
Das práticas religiosas dos povos originários do nosso país, das mais diversas etnias, ficaram na Umbanda a utilização das ervas ensinadas aos negros traficados, já que estes precisavam adaptar e incorporá-las ao seu saber para os mais diversos fins como, por exemplo, as garrafadas curativas, as defumações, o uso do fumo etc. Além disso, há a aprendizagem do exímio cuidado para com a mãe terra, já que é ela quem garante a sobrevivência dos seres. É através das entidades dos caboclos e das caboclas que se manifestam nos terreiros de Umbanda, a partir do transe dos médiuns, que estabelecemos uma ligação com os nossos ancestrais indígenas, os verdadeiros donos da terra que ocupamos. Ao mencionar isto, a pretensão é destacar que estas entidades não são aqui entendidas como espíritos que tiveram, em uma de suas reencarnações, a condição de homens católicos, para que através disto pudessem ser validadas as suas magnitudes - tal como faz a narrativa do mito de fundação da Umbanda, ao dizer que o Caboclo das Sete Encruzilhadas, em uma de suas encarnações, fora frei Gabriel Malagrida.
Os primeiros negros africanos traficados para o Brasil, em um período que durou três séculos (do XVI ao século XVIII), foram os do grupo banto - designação dada para o conjunto de povos que habitavam a África Central e Meridional que, apesar das diferenças étnicas, compartilhavam o mesmo tronco linguístico. Vieram do Congo, de Angola, Cabinda, Benguela...
Dos bantos, a umbanda absorveu: a concepção religiosa fundamentada na experiência e no saber passado pela oralidade; o respeito e a valorização dos elementos da natureza – verdadeiras divindades; o entendimento da interligação entre o mundo invisível e o mundo visível; o entendimento de ancestralidade e antepassados; uma não visão maniqueísta de mundo (bem/mal, céu/inferno, luz/sombra); o princípio do ubuntu- regra de conduta ou ética social - que pode ser entendido como respeito à religiosidade, individualidade e particularidade dos outros; o toque dos tambores- tão ancestrais quanto o próprio homem- executado com as mãos e mais propícios ao improviso (toque/ritmo congo de ouro, barravento, cabula); a especificação dos lugares que acompanham o nome de muitos pretos e preto-velhas (Pai Benedito D’Angola, Pai Guiné, S. Rei de Congo, Pai José Cabinda, Vovó Maria Benguela, Vovó Chica de Luanda, Vovó Cambinda, Vovó Luíza de Mina...); o ato de fazer oferendas de comidas e bebidas; o transe; o uso da pemba para consagração de objetos ritualísticos e para riscar os pontos no chão; a herança de fazermos patuás ( palavra de origem tupi que significa cesta ,baú, em que se colocam itens para proteção) similar às bolsas de mandingas usadas pelos africanos na diáspora, no século XVII e XVIII, e tantos outros saberes e práticas.
Cabe lembrar, também, que o vocábulo umbanda, de acordo com o Novo Dicionário Banto no Brasil, de Nei Lopes, “ocorre no umbundo e no quimbundo significando arte de curandeiro, ciência médica, medicina. Em umbundo, o termo designa curandeiro, o médico tradicional, é imbanda”. Ainda acrescenta o autor que “em quimbundo, o singular é Kimbanda, e seu plural imbanda, também.”
Dessa forma, fica evidente que a palavra em questão não é criação de nenhuma entidade ou ser humano fundador de uma religião, como apregoam muitas narrativas acerca do surgimento da Umbanda, nem tampouco que a Kimbanda é oposto da Umbanda. Entende-se por kimbanda (um médico), que utiliza a umbanda, ou seja, a(s) ciência(s) médica(s). No Candomblé Angola, kimbanda é o nome do Rito praticado, sendo o Sacerdote chamado de Táta Kimbanda (Pai de Quimbanda), segundo Mário Filho.
As deturpações destes termos, bem como de seus significados, deve-se ao racismo impregnado em nossa sociedade, tal como bichos peçonhentos que espalham seus venenos nas vítimas. E é sob este alicerce racista que propostas absurdas a respeito da umbanda são apresentadas no 1º Congresso de Espiritismo de Umbanda, ocorrido em 1941, idealizado e realizado por um grupo de intelectuais da elite branca do nosso país.
O objetivo daquele congresso era estabelecer o que era umbanda, sua origem e as diretrizes para a religião. Uma das propostas apresentou a hipótese de que nome da umbanda teria a sua origem no sânscrito a partir do vocábulo aum-bandhá (“principio divino”) e que o seu local de origem era a Índia e não a África. Outra apresentou a necessidade de uma separação rígida entre a umbanda dita pura e a quimbanda considerada magia negra e prática do mal. A partir deste princípio, a umbanda seria compreendida, então, como uma religião associada à linha branca, magia branca, voltada para a prática do bem e da caridade. Uma reflexão que foi apresentada neste congresso, apesar de levar em conta a origem africana da umbanda, defendeu a ideia de que houve uma depuração dos ritos africanos quando estes entraram em contato com o cristianismo e o kardecismo. Ou seja, a umbanda seria, portanto, a redentora dos ritos bárbaros praticados pelos africanos. É neste contexto ideológico que surgem, provavelmente, o primeiro hino umbandista (1940/50); e o hino que se tornou oficial da religião (1961), cujas considerações serão feiras mais adiante neste artigo.
Retomemos a narrativa das práticas religiosas que adentraram a Umbanda. A partir do final do século XVIII, são traficados os iorubás- povo da África Ocidental, a sudoeste da Nigéria, no Daomé (atual Benim) e no Togo. Assim como o povo banto deixou sua marca na umbanda, os iorubás também deixaram. Destes a umbanda herdou o panteão dos Orixás com suas respectivas simbologias e funções dentro da cosmogonia, por vezes adulteradas: Oxalá (na umbanda está em posição acima dos outros orixás, sendo o senhor do elemento branco); Iemanjá (Nossa Senhora, a virgem-mãe de Jesus; a bela e jovem mulher branca deusa do mar; a sereia encantadora); Exu (o povo de rua, o lado negativo, aquele que busca a evolução através da prática da caridade); Ogum (“vencedor de demandas”, “general da umbanda”, o padroeiro da guerra); Oxóssi (líder dos caboclos; o caçador e protetor das matas); Oxum (a deusa das cachoeiras; a dona do ouro; Nossa Senhora); Iansã ( a deusa dos ventos; raios e tempestades; a mulher guerreira, dona do bambuzal); Xangô (orixá da lei e da justiça; o dono e morador das pedreiras) e os Ibeji ( os gêmeos; as crianças).
Em decorrência das trocas culturais estabelecidas por naturezas diversas, o panteão iorubá teve o acréscimo das divindades denominadas voduns, originárias de povos euê-fom, da região do antigo Daomé ( chamados de jejes- estrangeiros- aqui no Brasil). São eles: Nanã Boroquê ( a mais velha, a avô de Jesus; aquela que abandonou o filho na areia da praia por ele ter o corpo coberto de feridas);Omulu/Obaluaê (o curador das doenças, das pragas, o chefe das almas). Estes também são louvados na Umbanda.
Uma das explicativas mais recorrentes para que os Orixás fossem hoje conhecidos por nós, foi o fato de os negros, na diáspora, valerem-se de uma prática sincrética - o chamado sincretismo -, ou seja, atribuir ao santo católico, da religião do senhor branco, características correspondentes de cada um dos Orixás do panteão para que pudessem louvá-los de forma velada, garantindo, assim, a manutenção de suas tradições.
Entretanto, não podemos esquecer de que antes dos iorubás, os negros bantos - especialmente os provenientes do antigo reino do Congo - foram os primeiros a se valerem de estratégias de sobrevivência aqui no nosso país, usando o sincretismo religioso, através do calendário católico, também para as suas festas e celebrações. Vide, por exemplo, a Congada que - tendo como origem a coroação de antigos reis africanos – representa através da dança e da música, passagens históricas em homenagem a São Benedito, Santa Efigênia e especialmente a Nossa Senhora do Rosário.
Portanto, a partir dessas associações, constata-se na umbanda a influência do catolicismo popular introduzido pelos portugueses invasores /colonizadores. Sendo assim, veremos nos gongás (palavra de origem dos povos bantos= altar) a presença física de imagens do N, S. Jesus Cristo, da Virgem Maria e de outros santos, que desempenham no catolicismo a intermediação entre os homens e Deus. Absorve-se, então, na Umbanda, o calendário católico para as celebrações ritualísticas. Além disso, a caridade(um dos princípios do cristianismo) será potencializada, no século XX, pelos intelectuais egressos do Espiritismo “kardecista” que atrelam a Umbanda ao espiritismo. Aqui no Brasil, o espiritismo adquire o aspecto de religião baseada na ciência, sendo amplamente pautada no ideário cristão da prática do bem e da caridade. Ou seja, uma religião elevada e evoluída, ao contrário das práticas ditas africanas do negro inculto e bárbaro, segundo o pensar dos referidos senhores brancos intelectuais, como já fora por nós, aqui, mencionado.
Convém destacar que as associações entre santos católicos e Orixás não foram uniformes em todo o território nacional, ou seja, variaram em função do espaço geográfico. Desta forma, na região sudeste do nosso país, especificamente na Umbanda praticada na cidade do Rio de Janeiro, tem basicamente as seguintes associações: Oxalá = Jesus Cristo; Ogum = São Jorge; Oxóssi =São Sebastião; Xangô= S. João Batista/ S. Pedro/ S.Jerônimo ; Iansã =S. Bárbara; Oxum =N. S. da Conceição; Nanã = N. S. de Santana ; Iemanjá= N.S. da Glória; Obaluaê = S. Roque; Omulu = S. Lázaro. Contudo, em todo o território nacional, o Orixá Exu foi associado ao diabo, tanto pelo homem branco cristão como também pelo próprio negro da Nigéria já catequisado.
Entretanto, convém ressaltar que precisamos desconstruir a ideia de que o sincretismo religioso seja um fenômeno apenas restrito às religiões de matrizes africanas aqui no Brasil. Em sentido amplo, o fenômeno do sincretismo está presente também nas religiões ditas universais- cristianismo, islamismo, judaísmo- visto que religião é uma construção social e cultural.
Também estão naquele grupo dos iorubás, na diáspora africana, os negros denominados de malês. Malê, que em ioruba é imàlè e significa muçulmano, era o termo usado no Brasil, no século XIX, para designar os negros muçulmanos escravizados que sabiam ler e escrever em língua árabe. Eram muitas vezes mais instruídos que o próprio senhor que os mantinham escravizados. O uso do turbante - parte da indumentária- e o uso de roupas brancas às sextas-feiras, pelo malês aqui na diáspora, foram incorporados muito mais às vestimentas ritualísticas dos pertencentes ao Candomblé do que para os de Umbanda.
Há duas referências ao malês na Umbanda de Zélio Fernandino de Moraes- figura central do mito da fundação da Umbanda. Trata-se, em primeiro, do nome dado para a “nova” religião: Alabanda, que na tradução literal significa ao lado de Deus (Alláh- palavra árabe= Deus; e banda = “ao lado de” ), questão que desconsidera toda a influência banto na umbanda; e, em segundo, ao Orixá Mallet, caracterizado como sendo da vibração de Ogum( pode-se pressupor daí a presença da falange de Ogum de Malê ou Malei), uma entidade que incorpora em Zélio e quem determina a estruturação desta religião, segundo a narrativa da constituição da Umbanda no Brasil.
Feito este longo preâmbulo, busquemos entender, agora, que a umbanda para ser aceita na sociedade brasileira na primeira metade do século XX passa por um processo de apagamento quase que por completo de sua matriz africana, a partir de líderes do movimento umbandista que fizeram questão de apresentá-la como uma religião brasileira. E sendo assim, tendo em vista o contexto sócio-histórico dessa primeira metade do século XX, o caráter nacionalista atribuído à umbanda alinha-se ao discurso político-ideológico implantado pelo Estado Novo de que no Brasil não havia conflitos étnicos e culturais. Também o fato de colocar a umbanda sob a rubrica do espiritismo representou um caminho para a sua legitimação, uma vez que a religião Kardecista gozava de caráter “científico” e distanciava-se das práticas religiosas de matriz africana. Dessa forma, de acordo com essa perspectiva, a justificativa da herança afro-indígena na umbanda passa a ter um caráter de evolução, de aprimoramento do que é selvagem e bárbaro. A Umbanda, então, é apresentada como a evolução cultural do povo brasileiro: a representação mestiça da nossa nacionalidade.
Tendo em vista a construção político-ideológica do discurso de ser a Umbanda a religião representante da nossa nacionalidade, fica evidente a necessidade de se criar um hino para expressar os ideais e valores que são defendidos e propagados por ela. Assim sendo, encontraremos dois hinos elaborados: o primeiro, intitulado Hino Umbandista, provavelmente da década de 40/50, de autoria de Isis Fossati Guimarães e Jerson D’Oliveira; e o segundo, de 1961, escrita por de José Manoel Alves e musicada por Dalmo da Trindade Reis.
Talvez muitos umbandistas nem sequer suspeitem da possibilidade de que tenha havido antes do tão conhecido “refletiu a luz divina”, outra composição para ser o símbolo máximo da Umbanda. Encontramos a informação deste provável primeiro hino umbandista na página do site GGN- Jornal de Todos os Brasil- com o título “O primeiro hino da umbanda”, publicado em 26 de novembro de 2013. Nesta página está a seguinte informação:
Disco histórico, faixa única, de rotação 78, provavelmente da década de 1940/50, intitulado: “Hino Umbandista” de autoria de: Iris Fossati Guimarães e Jerson D´Oliveira, orquestrado pelo afamado maestro Radamés Gnattali. Esse disco é uma raridade, pelo fato de que dispõe de uma música intitulada “Hino Umbandista”, anterior ao hino oficial que foi formulado pelo senhor J. M. Alves, na década de 60. Não encontramos absolutamente ninguém que o conhecesse, bem como nas pesquisas realizadas na Net, também não encontramos nenhuma referencia. Inclusive, este disco, até então, era desconhecido pela própria família da maestro, não fazendo parte do acervo histórico dedicado a ele. Agradecemos a nosso irmão Pai Juruá, pela conservação e descoberta dessa raridade!
Disco histórico, faixa única, de rotação 78, provavelmente da década de 1940/50, intitulado: “Hino Umbandista” de autoria de: Iris Fossati Guimarães e Jerson D´Oliveira, orquestrado pelo afamado maestro Radamés Gnattali. Esse disco é uma raridade, pelo fato de que dispõe de uma música intitulada “Hino Umbandista”, anterior ao hino oficial que foi formulado pelo senhor J. M. Alves, na década de 60. Não encontramos absolutamente ninguém que o conhecesse, bem como nas pesquisas realizadas na Net, também não encontramos nenhuma referencia. Inclusive, este disco, até então, era desconhecido pela própria família da maestro, não fazendo parte do acervo histórico dedicado a ele. Agradecemos a nosso irmão Pai Juruá, pela conservação e descoberta dessa raridade!
Chama-nos a também a atenção, ao ler a descrição acima, de que não há nenhuma referência a essa composição nas narrativas sobre a Umbanda em nenhum autor que se dedica aos estudos desta religião. E mais surpreendente ainda é o fato de que esta composição não tenha sido mencionada nos congressos de Umbanda realizados em 1941 e 1961. A explicação de que nem a família do renomado maestro sabia da existência desta composição, por ela não fazer parte do acervo dele, e que a descoberta de tal raridade se deve ao irmão Pai Juruá, abre um leque de dúvidas para a possibilidade de entendimento para a referida produção.
Em primeiro lugar, inferimos que produzir um disco em 78 rotações, não era algo muito simples, ou que não demandasse custos. O músico Radmés Gnattali a quem se credita a possível orquestração do hino é um artista que teve uma renomada carreira. Então: qual o motivo de o próprio Radmés não ter o disco? De não haver divulgação?
Em segundo, a explicação apresentada no portal GGN abre a hipótese de que o único possuidor de tal disco é o Pai Juruá, a partir da utilização da palavra “conservação. Entretanto, logo em seguida a palavra “descoberta”, que é acrescentada, conduz-nos para o entendimento de que o pai Juruá tinha o disco conservado, mas não sabia da raridade dele; ou também para o entendimento de que o autor do texto, de fato, manifesta o seu real agradecimento pelo fato de saber da existência de um disco de 78 rotação estar bem conservado e surpreende-se com a incrível descoberta “dessa raridade” comunicada por Pai Juruá a ele, escritor do texto.
Em outra página da Internet, que também fala desse primeiro hino umbandista, já encontramos explicitamente que o disco era de propriedade de Pai Juruá, “do Templo das Estrelas Azul – Casa de oração e Escola Umbandista, que diz muito sobre o que realmente é a Umbanda.” Então, por que não houve uma ampla divulgação a respeito deste primeiro hino?
Atrás de repostas, fomos à Internet buscar informações do citado Pai Juruá. Paulo Rogério Segatto- Pai Juruá- nasceu em 1955, em Santo André (SP) e faleceu em 2020, Santo André (SP), aos 64 anos, vítima do novo coronavírus. Escreveu mais de dez livros sobre espiritualidade e foi dirigente do Templo da Estrela Azul- Escola Iniciática Umbanda Crística Estrela Azul ( SP). Na página deste templo, na Internt, há um longo texto a cerca da história da casa que, de certa forma, corrobora o que escrevemos nas primeiras páginas deste nosso texto, mas nada há em relação ao disco do hino umbantista.
Templo da Estrela Azul, inicialmente Casa de Caridade Pai Matheus, foi fundado em 28 de setembro de 1937 por Mãe Alice (Alice Gurayebe Boechat) orientada pelo guia chefe que com ela trabalhava, Pai Matheus de Aruanda [...]Com o desencarne de Mãe Alice, seu neto Paulo Rogério Segatto, conhecido como Padrinho Juruá, deu continuidade aos trabalhos de sua avó [...] Designado pela Espiritualidade como novo Diretor Espiritual, alterou o nome da casa para Templo da Estrela Azul.
[...]Em 2011, fundou oficialmente a Umbanda Crística, doutrina adotada pelo Templo da Estrela Azul e outras casas que também a aplicam. Nesta doutrina, implantou todos os ensinamentos recebidos desde a infância pelo nosso querido Pai Matheus de Aruanda e resgatou todos os preceitos da Umbanda fundada pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, incluindo tudo o que é crístico, pautado na razão e no bom senso. O amor que esse fundador possuía em seu trabalho espiritual o levou a dedicar sua vida para concretizar seu grande sonho: a obra literária que possibilita levar o conhecimento àqueles que desejarem estudar e aplicar a Umbanda Crística.
Por último, a pesquisa que realizei em relação aos autores Iris Fossati Guimarães e Jerson D’Oliveira restou infrutífera. Passemos a examinar, agora, o que diz este hino. Sugiro ao leitor que acesse o portal do acervotambor.blogspot.com para ouvir a melodia, pois afinal letra e música dialogam entre si.
“Avante, avante, umbandistas Sol do nosso porvir,
Oxalá nos aponta o caminho que devemos seguir,
Sempre avante lutando,
Para o bem da humanidade,
Sob a luz desse ideal,
Nossa lei será a caridade,
A nossa fé, a nossa luta,
Será salvar a todo irmão,
Pois só assim cumpriremos,
Nossa sagrada missão,
Seja na Terra ou no Céu,
Estaremos a servir,
A legião umbandista,
Do nosso imenso Brasil”.
Ao ouvir a introdução melódica deste hino, é impossível não fazer imediatamente a associação aos sons das marchas militares executadas nos quartéis e nas cerimônias cívicas. Essas marchas militares e outras canções com nítido teor patriótico- marcam um tempo em que as guerras, sendo muito comuns - adquiriam um tom motivacional para os êxitos militares. Eram executadas até mesmo durante as guerras para ataques e contra ataques. Para atestar o que está sendo dito aqui, proponho aos que estando lendo este artigo fazerem um cotejo com que se apresenta no vídeo “Uma Hora de Marchas e Dobrados do Brasil,” disponível no canal do Youtube, onde poderão ouvir: Canção do Expedionário (de 1944), Cisne Branco (1913- hino oficial da marinha), Avante Camarada (anos 20) e tantas outras.
O verso que inicia o hino traz a palavra de ordem “Avante” que se duplica no mesmo e se repete no terceiro verso. Essa reiteração da ordem coaduna-se com a melodia vibrante para motivar e estimular a ir à luta, pois afinal os “umbandistas [são]sol do nosso porvir”.
É interessante a imagem do sol associada aos umbandistas. O sol é a única estrela do sistema solar, cujo conjunto de corpos celestes gira em torno dele. Ele nos remete à energia, luz, brilho, calor. Assim sendo, os umbandistas, equiparados ao sol, terão lugar privilegiado em relação a qualquer outro indivíduo, já que de sua luz (saber) todos dependerão. Enfim, a umbanda é o caminho, o futuro. Por isso, “Oxalá nos aponta o caminho que devemos seguir”.
Ao mencionar Oxalá (o orixá negro), na realidade, o que se evoca é a imagem do Deus todo poderoso, o criador do universo. É Ele quem sabe e rege o destino de todos. “É Deus quem aponta a estrela que tem que brilhar”, parafraseando o verso cantado por Xande de Pilares. É Ele quem fornece a força e a energia para que os umbandistas possam estar “sempre avante lutando/ para o bem da humanidade”.
O termo “avante” do terceiro verso tem o seu sentido atenuado da ordem que adquiriu no início do hino. Em outras palavras: se no primeiro verso há um brado de invocação ao umbandista, no terceiro verso o avante perde a força de brado, de ordem impositiva e revela apenas o sentido de não desistência, o ir em frente. Afinal, isto é necessário “para o bem da humanidade”. Esse para o bem da humanidade revela uma enorme pretensão e aponta para uma certeza absoluta.
“Sob a luz desse ideal/Nossa lei será a caridade.” O ideal é fazer o bem, tendo por lei a caridade. Caridade como princípio de santidade e não de essência, ou seja, fazer caridade para salvação da alma.
“Nossa fé, a nossa luta,/Será salvar a todo irmão”. Lutar em prol da fé que professa. A escolha da palavra luta remete ao contexto de preparação para a guerra, já aqui mencionado em relação às machas militares. Já que o cenário é de guerra, há sempre mortos e feridos. É preciso socorrer os feridos e proteger os desamparados para que sejam salvos. Assim, “salvar a todo irmão” reitera o discurso arrogante e pretencioso de se ter a verdade absoluta, tal qual os dizeres de que os ritos africanos são bárbaros e precisam de depuração.
“Pois só assim cumpriremos/Nossa sagrada missão/Seja na Terra ou no céu.” Cumpre-se ordem, pedidos. Aqui, há o entendimento de ser um missionário, um ser escolhido para cumprir os desígnios divinos na vida e na morte. Apresenta “Terra e céu” como dois espaços não intercambiáveis, em que “Terra” é lugar dos vivos e “céu” o lugar onde estão os espíritos dispostos a “estaremos a servir” e que continuarão o trabalho para “A legião umbandista/Do nosso imenso Brasil”.
Passemos as considerações a respeito do hino oficial da Umbanda, cantado tanto por Umbandistas quanto por candomblecistas, em diversas cerimônias e eventos das religiões de matriz africana.
Em alguns terreiros de Umbanda, o hino é cantado no início de sessões especiais como, por exemplo, data de fundação do terreiro, consagração de médiuns, recebimento de autoridades religiosas, visita de outro terreiro e outras situações que assim o exigir. Já em outros, o hino é sempre cantado no início ou final de cada uma sessão.
Assim como nos perfilamos para a execução do Hino Nacional, o mesmo acontece ao se entoar o Hino da Umbanda: todos de pé. Ao final da cantoria, não se bate palmas tal como a regra prescrita para o hino nacional ( claro que na Umbanda isto não é tão rigoroso assim) Em algumas casas, leva-se a mão esquerda ao peito durante o cantar do hino; em outras, os médiuns da corrente dão as mãos para cantarem e em determinado trecho ( “Avante, filhos de Fé.... Levamos ao mundo inteiro/ A bandeira de Oxalá”) todos levantam as mãos entrelaçadas.
Originalmente com o titulo de Refletiu a Luz Divina, a letra do hino oficial da Umbanda foi escrita por José Manoel Alves e musicada por Dalmo da Trindade Reis, maestro tenente do Grande Conjunto da Policia Militar do Rio de Janeiro. Existem relatos de que o autor do hino era cego, porém não há registro real disto. O fato de fotografias da época mostrá-lo usando óculos escuros, isto não comprova que haja algum indício de deficiência grave. Levando em conta que o referido autor era militar lotado na cidade de São Paulo, onde se aposentou com a patente de capitão, temos um bom argumento para não dar crédito às narrativas de cegueira a ele atribuído. Cabe destacar que J. M. Alves é autor de várias músicas e compôs também diversos pontos de Umbanda: "Prece a Mamãe Oxum", “Saravá Oxóssi”; “Saudação aos Orixás”; “Xangô rolou a pedra” e “Xangô, rei da pedreira”.
No Segundo Congresso Nacional de Umbanda, realizado em 1961, no Maracanãzinho - RJ, que teve como um dos objetivos reafirmar a umbanda como religião brasileira, mesmo não havendo uniformidade nas práticas e doutrina, a apresentação da música “Refletiu a luz divina” foi aclamada e oficialmente reconhecida como o Hino da Umbanda.
Refletiu a luz divina
Em todo seu esplendor
É do Reino de Oxalá
Onde há paz e amor.
Luz que refletiu na Terra
Luz que refletiu no Mar
Luz que veio de Aruanda
Para tudo iluminar
Umbanda é paz e amor
Um Mundo cheio de luz
É força que nos dá vida
E à grandeza nos conduz
Avante filhos de fé
Como a nossa lei não há
Levando ao mundo inteiro
A bandeira de Oxalá.
O hino reflete muito bem as ideias tecidas sobre a Umbanda nas primeiras décadas do século XX de que era preciso apagar os traços negros para que ela se firmasse como religião exclusivamente brasileira. Se retirarmos a palavra “Oxalá” dessa letra, todo o restante da composição pode ser utilizado para servir de identidade a outro segmento religioso quer seja católico ou espírita. Não há na letra nenhuma palavra que faça referência ao universo africano. Cabe ressaltar que palavra Oxalá utilizada nessa letra, não representa, de fato, o Orixá. Ela vem acompanhada da palavra “reino”, o que faz com que pensemos de imediato no reino de Deus, que representa outra cosmovisão. Além disso, todo o texto evoca a uma claridade que se reflete e se expressa pela repetição, quatro vezes, da palavra “luz”. Esta luz é “divina; é emanada do alto.
Muito oportuno, ao falar de luz divina, trazer as palavras de Aloízio Fontenele, um dos primeiros autores de Umbanda da década de 40, sobre o significado da palavra umbanda.
A palavra UMBANDA, significa: NA LUZ DE DEUS, ou ainda etimologicamente falando: LUZ DIVINA, é a tradução correta da palavra UMBANDA, compilada do original em PALLI, na qual foram escritas as SAGRADAS ESCRITURAS e que no seu GÊNESIS já vem demonstrando que a Bíblia, na mesma parte referida, nada mais é do que a tradução incorreta de palli para o hebraico[...] ( Apud Cumino, 2011:97)
Fica evidente que tudo o foi dito na citação, além de reiterar o total apagamento das raízes negras da Umbanda, também reafirma a figura de Cristo como a luz do mundo. Podemos destacar, também, o jogo de oposições bem marcantes entre luz e escuridão. Assim, tudo o que está na e para a luz é do bem/divino; o que está no e para o escuro é do mal/ satânico. Portanto, é preciso cuidar de um lado (o bem/a luz) para livrar-se do outro (o mal/a escuridão). Essa concepção entra em desacordo com o pensar africano, uma vez que este tem uma visão complementar do mundo e do ser, isto é, ao mesmo tempo se é bem e mal.
“Onde há paz e amor”. É o mundo ideal que se almeja. O mundo sem as contradições. Entretanto, se pensarmos de fato no “reino” de onde vem o Orixá Oxalá , veremos que não é bem assim.
“Luz que refletiu na terra/ Luz que refletiu no mar”. Encontramos aqui a representação dos dois extremos do mundo. Novamente a concepção de bipolaridade. Além do caráter de imensidão que estes dois lugares simbolizam.
“Luz que veio de aruanda”. Novamente a evocação do poder divino que está em posição superior, que não é parte integrante do homem na Terra. Convém ressaltar que a palavra aruanda tem o significado de ser uma espécie de “colônia” , de “paraíso celestial” onde estão os espíritos bons - que em nada remete ao Orum dos iorubanos. Evidencia-se nesta imagem, portanto, o ideário espírita cristão. E se é assim, “A Umbanda é paz e amor/ Um mundo cheio de luz”.
“Avante filhos de fé/Como a nossa lei não há”. A palavra de ordem “avante” utilizada aqui, figura no campo semântico da luta, do se travar batalhas. Então é preciso impulsionar para que se chegue ao objetivo. “Como a nossa lei não há”, é uma pretensão. É superioridade. É o convencimento para que se leve “ ao mundo inteiro/A bandeira de Oxalá.” Por bandeira compreende-se o um símbolo visual de representação de identidade, identificação, de pertencimento. A “bandeira” de Oxalá está ligada a qual noção de identidade ? A identidade brasileira? A identificação com o ideário espírita/cristão?
A título de conclusão de este nosso ir além, resta-nos a constatação de que a busca de conhecimentos para uma reflexão mais atenta à religião que praticamos, faz com que redimensionemos os nossos olhares e nos posicionemos com mais segura frente às diversas e múltiplas questões. Continuaremos a cantar o hino da Umbanda, só que, agora, de maneira ressignificada.
Referências
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FERNANDES, S.M. &HENN, L.G. As voltas da religião: o desenvolvimento histórico da Umbanda. In: https://periodicos.ufpb.br/index.php/religare/article/view/41774/22058 Acessado em abril de 2023
FERNANDES, S. Cultos híbridos no que é afro-brasileiro: qual a fronteira entre umbanda, quimbanda e candomblé? Disponível em:< http://www.abhr.org.br/plura/ojs/index.php/anais/article/viewFile/669/557> Acessado em janeiro de 2019.
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Mãe Lelê
Mãe Lelê, Leizimar G. da Costa e Silva, está na Umbanda há mais de 50 anos. Foi consagrada como sacerdotisa de Umbanda no dia 23 de abril de 2011 no Centro Espírita São Jorge de Ronda, fundado em 1975 por sua mãe carnal, D. Lais, e também sua mãe na Umbanda. E sendo assim, valoriza o lugar de onde veio; lugar onde construiu a sua identidade e aprendeu a viver e a conviver com o sagrado de forma respeitosa e livre. [+ informações de Mãe Lelê]
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