Por: Prof. Dr. Babalawô Ivanir dos Santos
10/12/2022 | 00:00
Um brevíssimo panorama sobre as Histórias nos permite enxergar que a intolerância ainda é um dos maiores desafios para a construção da coexistência pacífica em várias partes do mundo. A intolerância religiosa, assim como o racismo, ainda é um dos maiores desafios para construção de uma sociedade mais igualitária. Um desafio que vem se arrastando ao longos dos séculos e se infiltrando dentro da sociedade brasileira.
Uma das melhores representações que gosto de ter sobre a intolerância religiosa é compará-la ao imenso e destruidor monstro marinho Leviatã, descrito em várias mitologias como o destruidor, que ataca ferozmente suas vítimas com os seus imensos oito tentáculos. Mas, na contemporaneidade, o nosso Leviatã se chama intolerâncias e, diferente das mitologias, cada tentáculo tem um nome e enrijecido cotidianamente pelas estruturas políticas e econômicas brasileiras. E podemos nomear os tentáculos desse grande monstro; racismo, misoginia, homofobia, transfobia, xenofobia, machismo, desigualdade e intolerância. Juntos, esses tentáculos permeiam nossas relações sociais, políticas, econômicas e religiosas deixando seus rastros de destruição e desagregação, desigualdade por onde passa.
Provavelmente, se olharmos atentamente dentro do ‘nosso’ Leviatã contemporâneo, entre as intolerâncias, salta aos nossos olhos a intolerância religiosa, que vem ceifando vidas, deixando vítimas e provocando danos irreversíveis. Bom, antes de prosseguir com as nossas exposições quero ressaltar que digo ‘nosso’ Leviatã, porque compreendo que o monstro das intolerâncias foi gerado e gestado por toda a sociedade brasileira e se ele ainda existe é porque não conseguimos resolver e promovermos ações efetivas para a promoção das tolerâncias em nossas sociedade. Um exemplo para tal constatação é observarmos que mesmo garantida por lei, a liberdade religiosa não é uma realidade para as religiões em solo brasileiro, “ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias” nos diz a Constituição Federal em seu artigo 5° VI.
Mas os dados apresentados no livro Intolerância Religiosa no Brasil: Relatório e Balanço nos revelam que 71% dos casos são contra adeptos das religiões afro-brasileiras. Mesmo publicado em 2017, pelo Centro de Articulação de Populações Marginalizadas, em parceria com a editora Klíne, os dados nos revelam uma nefasta realidade que assola à todas as minorias religiosas representativas no Brasil, que durante muitos anos usou o slogan: "Somos Todos Iguais", e, é lido no exterior como "O país das igualdades".
Reconfigurando as estruturas -
Em "Memórias da Plantação” Grada Kilomba (2020: 13) pontua que só é “ Só quando se reconfiguram as estruturas de poder é que as muitas identidades marginalizadas podem também, finalmente, reconfigurar a noção de conhecimento”, tomando essa ideia como um ponto focal para a compreensão do racismo e da intolerância religiosa no Brasil endosso-a pontuando que para além das reconfigurações das estruturas também precisamos reconfigurar as pessoas que gestão as estruturas sociais, políticas e econômicas. Pois são nesses e através desse meios que o racismo e a intolerância religiosa se fortalecem. E não podemos perder de vista que falar e escrever sobre racismo e intolerância religiosa é pontuar os processos de glorificação de um passado escravista e a negação das realidades de violência cotidiana sobre as populações negras e os adeptos das religiões de matrizes africanas.
E cá entre estudos e escritas, nos bem sabemos que a sociedade brasileira vive sobre a glorificação de um passado e de uma história colonial e, ainda hoje, usa todos os artifícios possíveis para marginalizar, invisibilizar e estigmatizar os corpos, culturas e tradições negras. Diante do crescimento dos casos de intolerância religiosa, dentro do presente cenário político e social brasileiro, realidade que não nos favorece em nada, um certo desejo teimoso de prosseguir na luta cotidiana pesquisando, analisando, escrevendo e denunciando todos esses fatos permanece aceso todos os dias. O racismo e intolerância religiosa são reais, ameaçam e cotidiana para boa parte dos grupos religiosos marginalizados. E no momento em que me arrisco a escrever essas linhas, vários casos de intolerância religiosa estão acontecendo dentro e fora do Brasil.
Durante muitas décadas, as comunidades negras e nossas religiões, que têm suas matrizes na África subsaariana, ficaram confinadas à objetificação de pesquisas no campo das ciências, ou quando muito como substrato estatístico para pesquisas para bancos de dados. Sair dessa marginalidade social, à qual foram condicionadas, e promover um estudo voltado para as resistências das religiões de matrizes africanas, enquanto sujeitos históricos, foi, e ainda é, um dos maiores desafios para a academia brasileira.
Destarte, precisamos pautar que a intolerância religiosa é um fenômeno social. Fenômeno, aqui entendido não como algo que ocorre em determinado período histórico. A intolerância é um fenômeno na medida em que pode dar explicações e análises para casos de violência religiosa no campo das relações humanas. E precisamos pautar que a intolerância religiosa, assim como o racismo, não é um fenômeno social que acontece exclusivamente no Brasil. Mas é em solo brasileiro que ela vem a cada dia se transformando em uma questão endêmica no nosso país.
1 - O presente e brevíssimo artigo é uma releitura do texto O Leviatã contemporâneo, publicado no jornal O DIA, em 21 de janeiro de 2019. A versão do sexto ora citado está disponível em disponível em: https://odia.ig.com.br/opiniao/2019/01/5612869-ivanir-dos-santos--o-leviata-contemporaneo.html
2 Pós-Doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/UFRJ). Conselheiro Estratégico do Centro de Articulações de População Marginalizada (CEAP). Interlocutor da
Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR). Agraciado com prêmio International Religious Freedom (IRF), em julho de 2019. Currículo: Lattes- http://lattes.cnpq.br/2914229161403132
Referências
KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano; tradução Jessi Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó. 2020.
HOOKS, Bell. Talking Back: Thinking Feminist, Thinking Black. Boston: South End Press, 1989.
SANTOS, Babalawô Ivanir dos (org.). Intolerância religiosa no Brasil: Relatório e Balanço = Religious intolerance in Brazil: report account. Rio de Janeiro: Klíne/ CEAP,
2016. Edição bilíngue.
SANTOS, Ivanir dos; SEMOG, Éle. Apresentação. In: SANTOS, Ivanir dos ; ESTEVES FILHO, Astrogildo (org.). Intolerância religiosa x democracia. Rio de Janeiro: CEAP, 2009.
SANTOS, Ivanir. Marchar Não é Caminhar: interfaces políticas e sociais das religiões de matriz africana no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Pallas, 2019.
Babalawô Ivanir dos Santos
Babalawô, Dr. Prof. do Programa de pós-graduação em História Comparada da Universidade Federal do RJ, interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) e Fundador do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP)/Membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN).
Há 40 anos atuando em prol das liberdades, dos direitos humanos, das pluralidades contra o racismo e a intolerância religiosa, Ivanir dos Santos recebeu o prêmio International Religious Freedom (IRF), em julho de 2019. O Prêmio foi entregue pelo Departamento de Estado do Governo dos Estados Unidos, durante evento em Washington, pela sua importância na luta contra a intolerância a praticantes de religiões de matriz africana no Brasil. Ele foi o único líder religioso do Ocidente a ser premiado
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