Por: Marcos Moura
20/03/2023 | 11:38
Minha história começa em 1538 quando os Portugueses sequestraram e escravizaram meus ancestrais, mas sendo mais especifico, minha trajetória na religião de matrizes africanas começou no dia 08 de Junho de 1934 quando nascia Edicéa da Cruz Moura, minha avó paterna. Mulher negra que viu, viveu e sofreu as mais variadas formas que o racismo pode se apresentar. Quando nasceu, a prática da capoeira ainda era crime (Decreto número 847, de 11 de outubro de 1890) e com apenas 7 anos “presenciou” a aplicação da Lei da vadiagem (prevista no artigo 59 do decreto-lei 3.688 de 1941). Encontrava felicidade na família, nas rodas de samba com amigos e ainda jovem conheceu a umbanda, lugar em que a felicidade se completava.
Em 1981, eu tinha apenas 4 anos e já tomava benção a Pai José (Preto Velho) levado por minha mãe, na casa de umbanda que vovó era filha, mamãe também me levava na casa da saudosa D. Mariana, a rezadeira aqui do bairro. Até que um dia mamãe foi “evangelizada” e convencida de que nos terreiros se cultuavam demônios, e a partir de 1987, iniciei o que seria um longo período de afastamento da minha ancestralidade e um processo de reprodução da demonização das religiões de culto africano. Estava eu lá, plantando sementes da intolerância. Foram muitos anos vivendo em uma das igrejas evangélicas que mais contribuíram para o racismo religioso instaurado no Brasil. Foram muitas idas e vindas neste lugar de estar/ser pertencente a congregação, hora frequentando e hora me afastado porque questionava o que ouvia e não entendia as incoerências dos sermões (palavra de deus) ensinados nos cultos, enquanto acompanhava a hipocrisia da igreja no seu papel social. E não entendam a declaração como um ataque às igrejas, esse papel elas já ocupam. Cresci ouvindo os mais cruéis absurdos sobre umbanda e candomblé e por pouco, muito pouco a igreja não fez nossa família romper qualquer laço afetivo com minha avó (umbandista).
Há exatamente 10 anos (2013) eu deixei de frequentar a igreja e o processo de reconexão com o Sagrado ainda demorou, pois somente em 2019, comecei a visitar alguns Asès para consulta e pesquisa sobre um longa-metragem que estava produzindo, e claro que a semente que estava plantada desde 1981 iria germinar. Houve uma pausa nas idas nos terreiros por conta do período pandêmico e em 2022 me vi de fato reconectado com o Sagrado através do Asé d'Ogun Já, dirigido pela Iyalorisà Juçara de Yemojá. Lugar onde me reconecto com minha ancestralidade, onde sou acolhido, lugar que cuido da minha espiritualidade, onde encontro afeto, onde promovemos e buscamos paz, uma comunidade, uma família. Lá aprendi que não existe culto religioso mais conectado com a natureza do que os cultos indígenas e africanos.
E ainda sobre minha trajetória, fui ensinado desde criança a tomar benção e o faço até hoje com meu pai, mas trago outras reflexões sobre a ancestralidade.
Nossa trajetória quanto sociedade colonizada infelizmente me impediu de enxergar o óbvio durante muitos anos. Mas em uma reflexão bem rasa sobre o Sagrado e a construção deste país, fico refletindo sobre o quanto nos foi negado conhecer nossa história e valorizar nossa ancestralidade (Divina e Humana). Antes da invasão (O que os livros chamam de descobrimento) não haviam deuses católicos ou qualquer outra doutrina e culto baseada no judaísmo ou cristianismo. Eram somente os indígenas realizando seus rituais em culto aos seus Deuses (Tupã, Jaci, Guaraci, Anhangá, Akuanduba, Yorixiriamori), popularmente conhecidos como Caboclos, e depois de algum tempo foram trazidos o povo negro sequestrado e escravizado. Chegaram neste país com sua fé, seus Deuses, seus rituais, sua cultura, mas infelizmente os brancos colonizadores (Portugueses) conseguiram apagar, marginalizar, demonizar tudo que fugia do padrão Europeu.
Cultuar Deuses indígenas e Africanos deveria ser popular, na verdade um culto natural em nossa sociedade, uma vez que éramos maioria comparado aos Europeus e infelizmente colhemos os frutos deste apagamento até os dias de hoje quando assistimos pregações religiosas estimulando o ódio, intolerância e racismo religioso contra meus irmãos e irmãs, ódio contra nossa ancestralidade, contra Yalorixás e Babalorixás (pais e mães de santo), ódio contra terreiros (Templos Sagrados).
Todo Brasileiro aceitando ou não, teve seu ancestral cultuando um desses Deuses! Também já escrevi aqui sobre as rezadeiras, benzedeiras que passaram em minha vida. E acredito que muitos que estão lendo este artigo também se identificarão sobre o quanto as rezadeiras foram importantes em nossas trajetórias. Aliás, quem demoniza as religiões de matrizes africanas e indígenas não deveriam nem fazer e tomar chá por que são heranças da nossa ancestralidade e que a sociedade tanto demoniza. Não deveriam curtir os desfiles de carnaval, pois o DNA do Samba é o Candomblé. Negam suas raízes, e são hipócritas que se beneficiam das conquistas e feitos realizados por nossos antepassados. Uma sociedade hipócrita que usa parte dos dialetos, cultos e rituais quando lhes convém.
A ignorância é tão grande que outro dia me perguntaram se eu acredito em Deus, como se eu tivesse mudado de lado. Como assim? O mal vai estar dentro das pessoas mesmo que elas estejam no altar! Não existe lado, existe respeito, fé, amor, a busca por paz, por harmonia, cuidado com os nossos. Existe gratidão e respeito aos mais velhos e aos mais novos.
Não me orgulho e me arrependo das ações de intolerância que realizei e de não ter conhecido o candomblé há mais tempo. Mas certamente o que me libertou foi o senso crítico e a liberdade para questionar que não abri mão de ter e viver.
Este texto é para compartilhar minha alegria, minha liberdade, mas, sobretudo para dizer que nunca é tarde para deixar de lado a ignorância e o ódio, e aprender mais sobre nossas origens.
Que Bàbá mi Logun Edé abençoe sempre.
Marcos Moura
Marcos Moura, jornalista, gestor e produtor cultural, educador social e diretor-fundador do Instituto Coletivo Ponte Cultural. Em 2015, produziu o curta metragem “Mensagem de Natal” e trabalhou no jornal O Fluminense. Em 2016, produziu o Vídeo Clipe, “Em busca do céu” e o Curta Metragem, “O Último Eldorado”, produziu (2) edições do FAM - Festival Apolo Multicultural. [+ informações de Marcos Moura]
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