Por: Gisele Rose
16/04/2024 | 19:59
Compreender o âmbito filosófico como um espaço de pensamentos e questionamentos é o que irá nos fazer atravessar os percursos traçados, a priori, pela visão eurocêntrica, posta como “universal” visto que,
Nesse sentido, a filosofia ocidental seria universal porque trata do Homem. Esse homem é ocidental, branco, civilizado, adulto, heterossexual, culturalmente cristão; ainda que seja “ateu”, o “o sujeito universal” e porta-voz da filosofia ocidental (NOGUERA, 2014, p.23).
Ao transitarmos pelas rotas cruzadas no Atlântico percebemos que para compreender os saberes filosóficos de axé precisamos forjar um giro epistêmico de entendimento daquilo que foi proposto como saber filosófico, dentro de uma perspectiva eurocêntrica, propondo um exercício de reconstrução epistemológica.
Em Terra Brasilis corpos negros que fizeram a travessia se encontram com corpos indígenas que aqui já estavam, desse cruzo de saberes que compõem nossas existências, temos a força da energia vital que nos faz ser e estar no mundo:
Sendo assim, é nossa responsabilidade assumir a emergência e a credibilização de outros saberes, diretamente comprometidos, agora, com o reposicionamento histórico daqueles que os praticam. Nessa perspectiva, emerge outro senso ético/estético; os saberes que cruzam a esfera do tempo, praticando nas frestas a invenção de um mundo novo, são aqueles que se encarnam na presença dos seres produzidos com outros. Firmemos nossas respostas combatendo a baixa estima que nos foi imposta; a problemática do conhecimento é fundamentalmente étnico-racial (RUFINO, 2019, p.12).
Pensar sobre saberes filosóficos de axé é emergir esse nosso senso ético/estético de saberes que estão presentes em rituais e narrativas, é compreender a terra como aliada, pois dela viemos e para ela voltaremos, compreender o alimento como fonte de energia para todos e todas, pensar a diversidade, multiplicidade e singularidade dos corpos.
No sentido de reinvenção e continuidade ancestral, iremos transitar pelos saberes filosóficos de axé, entendidos não apenas como religiões, mas sim como modos de vida elaborados no Brasil com a presença de elementos culturais africanos e indígenas, como crenças, saberes, valores, narrativas e práticas, sendo assim:
É de extrema relevância uma leitura antirracista para lançar luz em pontos cegos desse debate. Este exercício de investigação crítica, que problematiza as próprias bases da filosofia ocidental, é muitíssimo importante para a abertura de novas possibilidades epistêmicas ou o reconhecimento de outras modalidades filosóficas de pensamento (NOGUERA, 2014, p.52).
Com base no ditado iorubá que diz: “Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”, podemos compreender a dimensão filosófica do cruzo entre o ancestral e o contemporâneo, vislumbrando um giro epistêmico na construção de saberes filosóficos considerando a força vital, através do axé, como um outro horizonte filosófico propagando epistemologias outras na construção de memória e preservação da ancestralidade nos variados âmbitos da produção de conhecimento.
A problemática epistemológica abordada compreende como o saber se manifesta nas artes, rituais, nos estilos de pensamento e os modos de existência dentro e fora das comunidades de terreiro, garantindo a presença e a multiplicidade de saberes e de sabedorias que os constituem. Os saberes filosóficos de axé se apresentam nas matas, cachoeiras, vielas, morros e encruzilhadas como práticas contínuas de luta e resistência, pois:
Para muitos é difícil admitir isso, mas os inventores do que há de mais forte na cidade do Rio de Janeiro não discutiram filosofia nas academias e universidades, não escreveram tratados, não pintaram os quadros do Renascimento, não foram convidados a frequentar bibliotecas, não compuseram sinfonias, não conduziram exércitos em grandes guerras, não redigiram as leis, não fundaram empresas e só frequentaram os salões empedernidos para servir as sinhás.
Os nossos grandes inventores rufaram tambores, chamaram Zampiapungo e Olorum, riscaram o asfalto preenchendo de dança o intervalo entre as marcações do surdo, despacharam as encruzas, subiram o São Carlos e as escadarias da Penha, bradaram revividos em seus santos-cavalos nas matas e cachoeiras, celebraram os mortos na palma da mão (SIMAS, 2019, p. 13-14).
Mas o que seriam os saberes filosóficos de axé?
A pergunta feita como uma flecha lançada nos provoca a pensar um exercício filosófico que não esteja diretamente ligado nas bases eurocêntricas, mas sim nos caminhos traçados nas possibilidades da multiplicidade do cruzo entre o ancestral e o contemporâneo através dos saberes dos pretos e pretas velhas, dos caboclos e das caboclas e de todo o povo de rua.
A rua como sendo o local de manifestação filosófica, desde os gregos, é onde o axé se apresenta e se movimenta. Axé, a energia vital que nos fortalece com seu conglomerado de saberes arrebatadores.
Axé é ação, pujança, esperança, dor, sonho, realidade, amor, ódio, luta, resiliência, persistência, afeto, fé, perseverança. É a vontade de viver e aprender com vigor, alegria e brilho no olho, acreditando na força do presente. Em nada se assemelha a normas, burocracias, métodos rígidos e imutáveis. Pelo contrário. Tudo é uma possibilidade para quem é guiado pelo axé.
Pensar sobre o destaque do valor da experiência como fonte e possibilidade de produção de saberes outros, é uma alternativa para tornar visível vidas e atuações que ao longo do tempo foram invisibilizadas e que na atualidade são de suma importância para a construção de narrativas futuras.
No sentido mais geral, o termo filosofia designa a busca pelo conhecimento, a qual se iniciou quando os seres humanos começaram a tentar compreender o mundo por meio do que foi construído como sendo razão, nesse sentido:
Torna-se necessário, dessa forma, invocarmos as sabedorias ancestrais, porque, ao emergirem, ao serem manifestadas como práticas de saber, elas trazem as presenças daqueles que compõem junto conosco os giros dessa canjira espiralada que é a vida. A invocação da ancestralidade como um princípio de presença, saber e comunicações é, logo, uma prática em encruzilhadas (RUFINO, 2019, p. 16).
A propósito, em tempos de tanta violência gratuita, vale pontuar que axé é vida, que é um dom divino, de caráter transcendental que nos fortalece e nos proporciona o nosso ser e estar no mundo.
REFERÊNCIAS
NOGUERA, Renato. O ensino de filosofia e a lei 10.639/03. Rio de Janeiro: Pallas, 2014.
RUFINO, Luiz. Pedagogia das Encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019.
SIMAS, Luiz Antônio. O corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.
Gisele Rose
Filósofa e escritora. Professora da Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ). Mestra em Relações étnico raciais pelo Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ), Especialista em Energia e Sociedade no Capitalismo Contemporâneo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Graduada em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)... [+ informações de Gisele Rose]
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