Soberania Alimentar e os Povos de Terreiro: Uma Perspectiva de Resistência e Resiliência

Por: Iyalorixa Roberta de Yemonja

06/08/2024 | 12:33

A soberania alimentar é um conceito que vai além da simples segurança alimentar, envolvendo o direito dos povos de decidir sobre suas próprias políticas e estratégias de produção, distribuição e consumo de alimentos. É uma questão de autonomia e dignidade, profundamente ligada à cultura e à identidade de cada comunidade. Quando analisamos esse tema a partir da perspectiva dos povos de terreiro, a importância da soberania alimentar ganha novas camadas de significado e relevância.

Os povos de terreiro, guardiões de tradições ancestrais africanas no Brasil, possuem uma relação intrínseca e sagrada com a terra e a natureza. Em suas práticas religiosas e culturais, os alimentos ocupam um lugar central, não apenas como sustento físico, mas como elementos carregados de simbolismo e espiritualidade. Cada oferenda, cada prato preparado nos rituais, é um ato de conexão com os orixás, com os ancestrais e com a própria terra.

No contexto de um sistema alimentar globalizado e industrializado, que muitas vezes marginaliza as tradições locais e os pequenos agricultores, os povos de terreiro representam um bastião de resistência. Eles mantêm vivas as técnicas agrícolas tradicionais, o cultivo de plantas medicinais e alimentares, e a preparação de alimentos que respeitam os ciclos naturais e a biodiversidade.

A Agroecologia como Prática de Soberania

Para os povos de terreiro, a agroecologia não é apenas uma alternativa sustentável de produção agrícola, mas uma extensão de sua visão de mundo. Essa prática valoriza a diversidade, a reciclagem de nutrientes, o uso sustentável dos recursos naturais e o respeito pelos seres vivos, princípios que estão em perfeita harmonia com os ensinamentos ancestrais. A resistência contra os agrotóxicos e transgênicos, por exemplo, não é apenas uma questão de saúde, mas também de preservação das espécies vegetais sagradas e da própria identidade cultural. Plantar e cultivar de acordo com os ensinamentos dos orixás é um ato de soberania, de afirmar a autonomia frente a um modelo de produção agrícola que desconsidera a riqueza das práticas tradicionais.

Educação e Transmissão de Conhecimentos

A transmissão de conhecimentos entre gerações é outro aspecto fundamental para a soberania alimentar dos povos de terreiro. As rodas de conversa, as festas, os rituais e as celebrações são momentos de aprendizado e troca de saberes. As lideranças espirituais, como mães e pais de santo, desempenham um papel crucial na preservação e difusão desses conhecimentos.

A educação formal, muitas vezes alheia a essas tradições, pode ser enriquecida ao incorporar práticas pedagógicas que reconheçam e valorizem a contribuição dos povos de terreiro.

Projetos de educação ambiental, hortas comunitárias e feiras de produtos orgânicos podem se beneficiar imensamente do saber acumulado nas comunidades de terreiro.

Desafios e Perspectivas

Os povos de terreiro enfrentam diversos desafios, desde a intolerância religiosa até a pressão para se conformar a um modelo agrícola hegemônico. No entanto, sua resistência e resiliência são fontes de inspiração para movimentos de soberania alimentar em todo o mundo. O fortalecimento das políticas públicas que apoiam a agricultura familiar, a preservação das sementes crioulas e o reconhecimento dos territórios tradicionais são passos essenciais para garantir que esses saberes continuem a florescer.

A soberania alimentar, vista através da lente dos povos de terreiro, revela-se como um poderoso ato de resistência cultural e espiritual. É a afirmação de um modo de vida que respeita a terra, valoriza a diversidade e honra as tradições ancestrais. Em um mundo cada vez mais dominado pela homogeneização e pelo consumo desenfreado, os povos de terreiro nos lembram da importância de cultivar a terra com respeito e de alimentar nossos corpos e espíritos com dignidade.