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Teocracia e Estado Teocrático - Um perigo real

Por: Pejigãn Arthur Awofakan Ogundá Meji


Foto: Reprodução

03/06/2024 | 11:12


Baseado livremente em: A PERSPECTIVA DA RELIGIÃO PÚBLICA – Eric Hobsbawm


Há um aumento da presença do elemento religioso no discurso político, de poder, na coesão/coerção social e na construção das lideranças sociais. Essa penetração da política na religião e, principalmente, da religião na política, marcou a história dos homens, desde os primitivos agrupamentos fixados a terra, transformando bandos de caçadores coletores em grupos sociais. Essa mudança é marcada pelos ritos fúnebres religiosamente determinados, com base na crença de alguma forma de sobrevivência à morte, e, também, na existência de um ou mais seres superiores, divinos ou deuses. Avançou para sociedades complexas, dominadas por reis/deuses – como no Egito Antigo -, e por estados imperiais apoiados em direito teocrático, e nos dias atuais para estados, partidos políticos e organizações sociais que usam o discurso teocrático para exercer poder coercitivo sobre os grupos e sociedades.



A religião retomou, nos últimos setenta anos, seu papel de fornecer a diferentes grupos sociais e nacionais, uma linguagem eficaz na construção de discursos para mediar as relações dos indivíduos entre si (a mudança nas formas de saudações e cumprimentos diários e corriqueiros, embora simples, é exemplar), e “com o mundo exterior”.


Na verdade, o estado laico nunca conseguiu substituir, efetivamente, o discurso religioso para os grandes ritos da vida, mesmo impondo a sociedade sua burocracia lógica e fria, são os atos das religiões que validam socialmente ritos como o de casamento, nascimento, sepultamento, etc.


A partir dos últimos 25 anos do século XX, às religiões ampliaram e fortaleceram seu papel dominante na sociedade. Assim, temos o desenvolvimento da filantropia da Sé, que se vestiu, num dado momento, de uma retórica social-democrática, autodenominada de esquerda; a criação e disseminação do proselitismo midiático e televisível de denominações evangélicas; a ampliação da influência muçulmana no Oriente Médio e em outras latitudes, recolocando a questão dos livros sagrados como peça chave no debate político e na organização do estado, e nesse sentido a Revolução Iraniana sua violência como política, a Al Qaeda, são exemplos disso; na Índia onde há uma política partidária, que inclusive já dominou, algumas vezes, o aparelho de estado, que pretende, de forma intolerante, que somente haja uma interpretação ortodoxa dos Livros Hinduístas; o estado de Israel, que há 20 anos, aproximadamente, é dominado pelo sionismo, expressão do preconceito étnico-racial mais contundente na atualidade; em diversos momentos, nações no continente africano, oscilando na violência étnica, ora muçulmana, ora cristã, ora animista.


Hobsbawm afirma que aumentou o fervor religioso, e afirmo, que também das práticas das religiões e da fé, nas sociedades. As religiões voltaram a ser “o coração do mundo, num mundo sem coração” (K.Marx).


O discurso religioso, inquestionavelmente, tem um papel protagonista na política, em quase todo o mundo ocidental, no oriente médio e Eurásia, não sendo assim no extremo oriente, Rússia e China especificamente.


Hoje não é impróprio ou inadequado, analisarmos, concretamente, o mundo, a partir da divisão teocrática dos estados.


Estado é um agrupamento de pessoas que vivem em um território determinado, organizado, soberano e independente, que se constitui a partir da vontade de seu povo, que se manifesta, politicamente, sobre seus interesses. Algumas características do estado moderno são: o direito legítimo e exclusivo do uso da força, como forma de coesão, coerção e dominação social; se organizar em uma burocracia administrativa, governada por liderança política. Mas o estado é uma parte da sociedade, e não sua totalidade. Lida com a gestão do conflito de interesses gerais, enquanto outras formas de associação tratam dos interesses mais específicos de pequenos grupos e segmentos da sociedade.


Teocracia é a contração dos vocábulos gregos “theos (Deus)” e “kratos (poder), ou seja, um governo exercido diretamente por Deus, como nos hebreus, e vários outros povos na mesopotâmia, ou o Egito Antigo, que era governado por um Deus: o Faraó. Numa teocracia é o governo exercido diretamente por deus ou deuses, submetendo o povo a sua vontade soberana e inquestionável, ou através de profetas, misticos, ministros da fé ou médiuns. Modernamente, as teocracias são governadas por um corpo sacerdotal, normalmente comandados por uma liderança carismática aceita, eleita ou não, que é responsável e guardiã do fundamentalismo e dogmatismo divino. Essa organização sacerdotal sempre está presente nos sistemas teocráticos.


Estado teocrático moderno, que não é a mesma coisa que teocracia, é o estado territorial que conhecemos, cuja coesão é mantida pelo fundamentalismo religioso, e não pela submissão a um deus. O Irã e Israel são os exemplos mais destacados dessa nova forma de organização do estado.


No estado teocrático há um ou poucos partidos políticos, submetidos ideologicamente a teologia determinada, ortodoxa, intolerante, violenta e opressora, dominada pelos sacerdotes.


Na teocracia, não há nenhuma forma de pluralidade, e nem mesmo construção ideológica. Há, apenas, um corpo de ensinamentos e regras teológicas, que submetem o povo e substituem o aparelho burocrático do estado, uma vez que nação, estado, sociedade, governo e organização social, se confundem e são, apenas, fruto dos desígnios divinos.


Todas as teocracias são a construção de uma tirania, tendem a ter uma estrutura social com menos conflitos, porque as regras de deus não sofrem mudanças, elas são estáveis e perenes. A normatização das novas situações, se resolve por consulta espiritual sobre a vontade do deus. Uma vez revelada a norma, por quem tem poder para fazê-lo, ela se aplica imediata e inapelavelmente, de forma eficaz e totalitária.


Assim é possível se falar em estabilidade pelo pavor, terror, intolerância e violência. Também não há estratégias sociais de mobilidade social ascendentes, nem estímulos a inovação.


Ao longo da história se pôde observar essa estabilidade reacionária nas teocracias, desde os egípcios, passando pelos babilônios, palestinos e mesopotâmios, nas da África Central e Setentrional pré-coloniais, nas sociedades originárias das Américas central, andinas e das outras regiões. Em vários momentos, também, na dominação da cristandade na Europa e nas Américas.


Todas essas sociedades ainda preservam grupos, estamentos e segmentos sociais, características de teocracias tirânicas, intolerantes e, também, xenófobas, que se justificam sob o véu da preservação da tradição e ancestralidade.


Já os estados teocráticos não são tão estáveis e imóveis. Não é a vontade tirânica e incontestável de deus que determina o estado, a sociedade, o governo as relações sociais, a mobilidade ascendente e a aceitação da inovação. É a religião, cujas normas são construídas por um conjunto sacerdotal, a real fonte do poder, ou a burocracia dele derivada e submetida.


O corpo sacerdotal, torna a defesa de seus interesses de poder político e financeiro, em norma de organização da sociedade. Foi e é assim com a congregação da Sé, e seus sucedâneos nas igrejas católicas ortodoxas; o Sinédrio Judaico; ou, de formas bem mais toscas e inorgânicas, as organizações evangélicas protestantes com seus bispos, pastores e etc. que não possuem uma mínima estrutura burocrática e jurídica, que lhes dê validade e racionalidade.


Este poder totalitário se impõe a décadas, em algumas comunidades estadunidense, e até recentemente tendo resultado em baderna e anomia concretamente observadas, com consequências dramáticas, e, não poucas vezes, terminando em suicídio/assassinato imposto “manus militares” aos seus membros.


Nas formas de organização sacerdotal Islâmicas, onde controlam o aparelho de estado, na América do Norte e do Sul, nos Bálcãs, Eurásia, em toda à África, Índia e no Oriente Médio se tem ampliado o processo de recriação de estados teocráticos, que abolem as conquistas da democracia representativa burguesa.


Não são teocracias, mas estados territoriais modernos, com gestão e administração determinada pela constante interpretação, por doutores, de leis religiosas e tradicionais, criando novas regras religiosas, que perpetuam seus poderes.


O estado teocrático moderno, administrado por sacerdotes, é bastante violento, sectário e intolerante, onde a coesão social e submissão das pessoas, é conseguida pelo terrorismo insano e alucinado, pela condenação violenta a qualquer infringência, desobediência ou crime como pecado.


Há instabilidade de leis, regras e normas, já que não estão escritas e organizadas, mas derivam, somente, da interpretação pelo corpo sacerdotal que expressa a vontade da elite no poder.


Quando o ex presidente Bolsonaro disse “estado laico é o cacete, o Brasil é de Jesus”, ele não afirmava sua religiosidade carismática. Ao contrário, usava uma religião, na qual ele não crê, para tentar justificar desejos, ególatras, de abolição do estado organizado, sustentado na aplicação da justiça -positivada em um conjunto de leis votadas e passíveis de mudanças de acordo co regras preestabelecidas- por um corpo de juízes laicos, com o legítimo usa da força e violência, regulada por regras definidas e exercida por um conjunto militar profissional, e com mecanismos de surgimento e permanência de lideranças políticas e de suas organizações representativas, que são característicos dos estados republicanos atuais.


Mundo afora há outras lideranças com iguais intenções, e há facilidade nos meios digitais, de se conhecer esses fatos.


A farta oferta de dogmatismo religioso na sociedade, constitui uma biblioteca, um supermercado, de meios, recursos, instrumentos e armas, para construções totalitárias, tirânicas, autoritárias, racistas e sectárias como nunca se viu na história, nem mesmo no nazismo alemão.


O uso do discurso religioso em qualquer manifestação religiosa (como exemplo uma afirmação que vem se tornando regra para diversas organizações religiosas de matriz africana -é importante ressaltar que sou um sacerdote de um desses segmentos-, onde se diz que não há democracia, mas hierarquia e tradição. Uma construção abusiva, violenta, incivilizada, antidemocrática, autoritária e tirânica, porque hierarquia e tradição não são antônimos, nem antagônicos à democracia), sempre serviu, apenas, para justificar a dominação abusiva e tirânica, por uma minoria elitista, sobre a maioria desvalida, humilhada, espoliada e explorada.


Considerarmos os Povos de Matriz Africana no Novo Mundo, como formações sociais derivadas e consequência do processo de escravização -populações transformadas em mercadorias e vendidas como força de trabalho escrava vinda da África Central e Setentrional-, cuja justificativa, inclusive, os marcavam como descendentes de Canaã, filho Caã, neto de Noé, malditos e sem alma, destinados a serem servos dos servos de Jafé e seus descendentes.


Essa é, sempre, a perversa da construção do discurso religioso, que estrutura o estado teocrático e garante a opressão e dominação violenta das sociedades.


Assistimos a negação de valores democráticos liberais, em boa parte das formações sociais e históricas, com ataque aos estados nacionais, para substituí-los por valores e regras ideológicas, fundamentalmente informados por teologias, especialmente as judaicas/cristãs, as islâmicas e as baseadas nos livros sagrados do hinduísmo.


Essas construções sectárias se louvam em tradições ancestrais, destacando seus dogmas e normas reacionárias e incivilizadas, com dúbias referências religiosas, descontextualizadas das formações históricas em que foram criadas, transportadas para atualidade e aplicadas como se o tempo e a formação social não fossem outras, tudo sob o manto de preservar a “tradição” dos ancestrais e às praticas religiosas de antepassados.


Assim há um novo ciclo de teocracias e estados teocráticos, cujas bases não consideram os avanços da organização social laica, que se originou no período greco/romano, onde o estado passou a ser regido por normas estáveis, mas não imutáveis, pois as mudanças nas relações sociais e os desejos populares eram a fonte de legitimidade. Isso à 3.000 anos atrás.


Hoje, o “retorno a valores naturais” é a ideia de valores de deus ou deuses, propagado e propagandeado como “salvação” divina, contra os males da vida mundana. Entende-se por vida mundana os prazeres e os benefícios que a humanidade levou dez ou doze mil anos para construir.


Esses estados teocráticos são um retrocesso conservador e opressor, para justificar a exploração e expropriação da maioria, por uma elite sem vínculo moral ou ético, movidas pelos conflitos de interesses e de classes.


A burguesia transnacional manipulou o ressurgimento do agudo fervor religioso. Cooptou as lideranças carismáticas, dando-lhes um paradigma de excelência religiosa, com base na ostentação de seu sucesso financeiro.


Para tanto a liderança deve mostrar um certo luxo e um padrão de gastos elevados, como medida de bençãos de deus ou deuses as suas atitudes, pregações e atos votivos.


O líder religioso/sacerdote assume o referencial ideológico da burguesia, e como consequência, também assume a negação do estado republicano e laico, que não interessa, atualmente, a burguesia, que pretende vê-lo substituído na administração das sociedades por dois tipos de corporações: as corporações empresariais transnacionais, e sua lógica de tudo ser mercadoria, inclusive a água e o ar necessários a manutenção da vida; e organizações militares como meio de repressão e coerção violenta das manifestações reivindicatórias pelo povo. Acusam o estado representativo pelas iniquidades sociais, que são decorrentes do acirramento das contradições do capitalismo.


O perigo do fortalecimento dos estados teocráticos, além de mais exploração, opressão e violência social, é considerar setores e segmentos sociais indignos de todas as garantias jurídico/legais que os defendem da tirania do poder.


Grupos, setores e segmentos sociais que são desprestigiados por suas características, seja a cor da pele, origem étnica, religião, gênero, orientação, etc., também sofrem essas condenações e guerras, com fundamento religioso, paradigma o extermínio de pessoas consideradas infiéis, inferiores ou pecadoras.


Os povos de matriz africana nas Américas são alvo dessas teocracias tirânicas, violentas e sectárias.


O retrocesso ideologicamente construído, a partir de uma teologia imposta às sociedades como projeto, pela burguesia transnacional, justifica a exploração, a manutenção de privilégios de classe, e expropriação da massa trabalhadora, alienada de sua posição de classe.


Por fim, o fervor religioso exacerbado dessas novas teocracias e estados teocráticos, foge, muitas vezes, aos mecanismos de controle racional burocrático do estado, levando ao aumento da violência, e formação de grupos armados e criminosos para contê-la, já que prejudicam os lucros.


Nada disso é especulativo ou teórico. Portanto, é preciso lutar contra essa supervalorização das religiões como construtoras de discursos sociais, políticos e de poder.


Esse é o segundo texto dos três que pretendo publicar no AxéNews. O primeiro foi sobre a construção do ódio, esse segundo é sobre os perigos do ressurgimento das teocracias e estados teocráticos na atualidade, e um terceiro será sobre a relação da religião com a política e o poder. Benção a todas, todos e todxs, iboruboya, meus respeitos.




Pejigãn Arthur Awofakan Ogundá Meji - AxéNews

Pejigãn Arthur Awofakan Ogundá Meji

Cientista Político pela UFRJ, Acadêmico de Direito pela UNIVERCIDADE, Pesquisador assistente no Instituto PACS, Awofakan ni Orunmilá Ogundá Meji, pejigãn do Ile Axé Oxum Miwa, Pejigãn de Oxum, Otum Sarapembé do Ile Axé Egungum Alapasampá... [+ informações do Pejigãn Arthur Awofakan Ogundá Meji



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