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Transexualidade no Candomblé: adaptação e aceitação em uma religião ancestral

Por: Dr. Aurélio de Odé, Babalorixá



30/03/2024 | 15:24


Este texto explora a interseção entre a transexualidade e as práticas religiosas no contexto do Candomblé, uma religião que tem suas raízes nas tradições espirituais africanas e conhecida por sua resistência às mudanças externas ao longo dos séculos.


No entanto, à medida que a sociedade avança e a compreensão da diversidade de gênero se expande, surge a necessidade de examinar como essa religião ancestral está respondendo à presença e às necessidades das pessoas transexuais em suas diferentes comunidades. Estas linhas buscam explorar essa dinâmica, com foco no papel do Olórí Egbé, como facilitador de aceitação e de acolhimento para homens e mulheres trans no contexto do Candomblé.




Contexto Histórico e Cultural do Candomblé


O Candomblé, religião trazida para o Brasil durante o período da escravidão, é uma síntese das tradições espirituais africanas e das influências indígenas e europeias. É caracterizado por sua adoração aos orixás, divindades que representam diferentes aspectos da natureza e da vida humana. Ao longo dos séculos, o Candomblé tem sido um importante veículo de resistência cultural e espiritual não apenas para os descendentes de pessoas africanas escravizadas no Brasil, mas para toda pessoa que tem esse chamado em sua vida.


Transexualidade e Religião: um desafio para o Candomblé


A transexualidade é uma realidade complexa e multifacetada que desafia as concepções tradicionais de gênero e de identidades dentro das sociedades e instituições religiosas. No contexto do Candomblé, conhecido por suas tradições conservadoras e arraigadas, a presença de pessoas transexuais pode representar um desafio para as normas e valores estabelecidos pela comunidade religiosa. Porém, com o passar dos anos, muitas coisas tiveram de ser modificadas e adaptadas.


Um exemplo simples – pois, não há como mensurar, ou comparar, os sentimentos de exclusão social, e, muitas vezes, familiar, vivenciados pelas pessoas trans -, mas que pode servir como ilustração da necessidade de se evoluir diante de tantas mudanças sociais, culturais e tecnológicas, há que se lembrar de que o piso do salão de uma casa de Candomblé era de terra batida, hoje é de porcelanato, ou resina; o feijão do acarajé era quebrado na pedra, hoje é no liquidificador; a luz era de ìtanná (lamparina), hoje é a lâmpada de Led que ilumina o espaço sagrado.


É fato de que há a obrigação de evoluir na religião, porém ser perder a essência. No caso das pessoas trans é tão mais simples: é só receber e dar amor; é só respeitar o dom de ser diferente, já que só dessa forma se alcança a convivência saudável, assentada na civilidade e na paz que é tão fundamental na dinâmica da espiritualidade.


O papel do Olórí Egbé no processo de aceitação


O Olórí egbé, líder espiritual e comunitário dentro do Candomblé, desempenha um papel especial no processo de aceitação e acolhimento de pessoas transexuais dentro da comunidade. Como um guardião das tradições e valores do Candomblé, o Olórí egbé tem a responsabilidade de garantir que todas as pessoas sejam recebidas com amor e respeito dentro do espaço sagrado da Egbé.


O preconceito enfrentado por homens e mulheres trans dentro da comunidade tradicional do Candomblé pode ter consequências devastadoras, tanto para a saúde mental quanto para o bem-estar dessas pessoas. O estigma social, a discriminação e a falta de aceitação podem levar ao desenvolvimento de problemas emocionais, como a depressão, a ansiedade e o transtorno de estresse pós-traumático, desencadeando, muitas vezes, até quadros de violência.


A depressão é um dos principais riscos associados ao preconceito e à discriminação enfrentados por pessoas trans, dentro e fora da comunidade do Candomblé. O sentimento de não pertencimento, a falta de apoio social e a pressão para conformar-se às normas de gênero estabelecidas podem contribuir para um senso de desesperança, de baixa autoestima e de isolamento, aumentando o risco da depressão.


Além disso, o preconceito e a discriminação podem levar ao aumento do risco de práticas de automutilação, incluindo o suicídio, entre pessoas trans pertencentes as comunidades tradicionais de matriz africana, O sentimento de desalento, a sensação de estar desconectado, emocionalmente, das pessoas ao seu redor e a falta de acesso a recursos de apoio socioemocional podem fazer com que essas pessoas se sintam sem saída e sem esperança de melhora.


Outras situações afins incluem o desenvolvimento de transtornos relacionados ao estresse, como transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), em decorrência das experiências de discriminação e de violência. O medo de ser rejeitado, agredido ou marginalizado, devido à sua identidade de gênero, pode levar a uma constante sensação de alerta e ansiedade, impactando negativamente a saúde mental e o bem-estar emocional.


É importante reconhecer o perigo dessas situações e tomar medidas para prevenir e abordar o preconceito e a discriminação dentro da comunidade tradicional do Candomblé. Podemos ajudar a garantir que todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero, se sintam valorizadas, respeitadas e apoiadas dentro da comunidade do Candomblé, sem julgamentos, olhares “tortos”, piadinhas sem graça, críticas destrutivas, ou qualquer outro tipo de apontamentos ou negação.


Estratégias de Adaptação e Inclusão


Para promover a aceitação e a inclusão de pessoas transexuais, muitas comunidades candomblecistas estão adotando estratégias que buscam reconhecer e valorizar a diversidade de gênero dentro de suas práticas religiosas. Isso inclui a realização de rituais de iniciação específicos para pessoas transexuais, sem que haja separação, cada pessoa é o que ela é, de fato. Também é importante e necessário a criação de espaços seguros e acolhedores dentro dos terreiros em que desperte sentimento de rejeição.


Desafios e Oportunidades Futuras


A educação e a informação são elementos fundamentais para que a magia aconteça - tem que haver um diálogo aberto e informativo com toda família. Apesar dos avanços na aceitação de pessoas transexuais dentro do Candomblé, ainda existem desafios significativos a serem enfrentados.


A resistência por parte de alguns membros da comunidade e a falta de compreensão sobre questões de gênero podem dificultar o processo de inclusão. No entanto, à medida que a sociedade avança em direção a uma maior conscientização e aceitação da diversidade de gênero, há também oportunidades para o Candomblé se tornar um espaço ainda mais inclusivo e acolhedor para todas as pessoas.


A rejeição enfrentada por pessoas transexuais dentro da comunidade tradicional do Candomblé é um fenômeno enigmático, envolvendo uma série de fatores culturais, religiosos e sociais. Entre os aspectos que devem ser analisados e assimilados para promover uma mudança de conduta significativa, estão:


1. Educação e Conscientização: é fundamental proporcionar educação e conscientização sobre identidade de gênero, orientação sexual e expressão de gênero dentro da comunidade tradicional do Candomblé. Isso inclui a disseminação de informações precisas e sensíveis sobre as experiências e os desafios enfrentados por pessoas transexuais, desmistificando mitos e estereótipos prejudiciais;

2. Desconstrução de Crenças e Normas Limitadoras: muitas vezes, a rejeição às pessoas transexuais dentro da comunidade tradicional do Candomblé está enraizada em crenças e normas tradicionais que não reconhecem ou valorizam a diversidade de gênero. É importante desafiar e desconstruir essas crenças limitadoras, incentivando uma visão mais inclusiva e compassiva da espiritualidade e da identidade humana;

3. Diálogo e Abertura para o Debate: promover um diálogo aberto e respeitoso sobre questões de gênero e identidade dentro da comunidade é essencial para criar um ambiente propício à mudança. Isso envolve criar espaços seguros e acolhedores para discussões francas e honestas, onde todas as vozes possam ser ouvidas e respeitadas. É de fundamental importância que o Olórí Egbé disponha de um tempo para a escuta, ouvir quem precisa falar e desabafar;

4. Liderança e Exemplo: a liderança do Olórí Egbé desempenha um papel incomparável no processo de mudança de conduta dentro da comunidade tradicional do Candomblé. Ao demonstrar um compromisso firme com a inclusão, aceitação e respeito para todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero, o Olórí Egbé pode inspirar e motivar os membros da comunidade a seguirem seu exemplo; e

5. Acolhimento e Apoio: é importante oferecer apoio e acolhimento às pessoas transexuais dentro da comunidade, reconhecendo e valorizando suas identidades e experiências únicas. Isso pode incluir a criação de redes de apoio, a oferta de recursos e serviços específicos para pessoas transexuais e a promoção de uma cultura de solidariedade e empatia.


Ao abordar esses aspectos de maneira holística e colaborativa, a comunidade tradicional do Candomblé pode criar um ambiente mais amigável, abrangente, hospitaleiro e respeitoso para todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero. Essa mudança de conduta é essencial para garantir que a espiritualidade do Candomblé continue a ser relevante e significativa em um mundo cada vez mais diverso e plural.


Os povos tradicionais de matriz africana professam uma religião ancestral, profundamente, enraizada nas tradições espirituais africanas, entretanto, está enfrentando o desafio de adaptar-se às mudanças sociais e culturais em relação à transexualidade. O papel do Olórí Egbé, como um agente de acolhimento e apoio, é fundamental nesse processo, garantindo que todas as pessoas sejam recebidas com amor e respeito dentro do espaço sagrado da Egbé. Ao reconhecer e valorizar a diversidade de gênero, o Candomblé demonstra sua capacidade de evolução e adaptação às necessidades de sua comunidade, mantendo ao mesmo tempo suas raízes espirituais e culturais.


Desconstruindo Conceitos: A Necessidade de Aceitação nas comunidades tradicionais


Os orixás, nkises, voduns, catiços, encantados como figuras centrais das religiões afro-brasileiras, muitas vezes, nos ensinam lições importantes sobre aceitação e respeito à diversidade. Cada orixá possui características únicas e representa diferentes aspectos da vida e da natureza humana. Eles nos lembram da importância de reconhecer e valorizar a diversidade em todas as suas formas: seja cultural, étnica, racial, de gênero, de sexualidade ou de crenças.


No entanto, como seres humanos, podemos relutar em aprender essas lições devido a uma série de fatores, como preconceitos internalizados, medo do desconhecido, ou, simplesmente, a resistência à mudança. Às vezes, podemos nos sentirmos confortáveis em nossas próprias perspectivas e tradições, e isso pode nos impedir de abrir nossas mentes para novas formas de pensar e de ser.


Contudo, ao resistirmos a essas lições, perdemos a oportunidade de crescer e de nos tornarmos pessoas mais compassivas e compreensivas. Ao aceitarmos a diversidade e nos abrirmos para novas experiências e perspectivas, não só enriquecemos nossas próprias vidas, mas também contribuímos para a construção de uma sociedade mais irrestrita e harmoniosa.


As religiões afro-brasileiras são ricas em tradições e mitologias profundamente enraizadas e têm sido um farol de resistência cultural e espiritual ao longo dos séculos. No entanto, à medida que o mundo evolui e as noções de identidade de gênero e expressão se expandem, surge a necessidade premente de os seguidores do Candomblé revisarem seus conceitos e práticas em relação à aceitação das pessoas como elas, verdadeiramente, são.


É irônico e, ao mesmo tempo, revelador notar como essa religião venera divindades que desafiam as normas de gênero estabelecidas. Vamos citar o orixá Oxumarê, o Deus do Arco-íris que, também, se transforma em serpente que associado à dualidade e à transformação, representa o ciclo da vida, a renovação e a mudança.


Oxumarê é muitas vezes retratado como uma serpente que é capaz de se mover entre os reinos terrestres e celestiais, representando, assim, a conexão entre o céu e a terra. Relacionado ao arco-íris, pois, é considerado o guardião das cores e da diversidade, traduz um fenômeno óptico e meteorológico que separa a luz do sol, em seu espectro contínuo, quando ele brilha sobre gotículas de água suspensas no ar. Refletindo-se em suas várias cores, representa a multiplicidade da vida e a união de diferentes aspectos da existência. Essa associação com o arco-íris e suas cores expressa a ideia de que Oxumarê contém, em si mesmo, todas as dualidades e polaridades do universo, como o bem e o mal; o masculino e o feminino; a vida e a morte. Ele nos ensina sobre a importância de aceitar e integrar essas dualidades para alcançar o equilíbrio e a plenitude em nossas vidas.


Já Iemanjá, a Deusa que se metamorfoseia em peixe, é a Iyá Ori: a mãe de todas as cabeças. Como a matriarca do Bori, juntamente, com Oxalá em um ritual essencial nas tradições religiosas afro-brasileiras, Ela é venerada como a protetora e como farol espiritual de todos/as os/as iniciados/as. O Bori é uma cerimônia que busca trazer equilíbrio psicológico e espiritual, proteção e bênçãos para todas as pessoas, sem distinção. Iemanjá é invocada durante o Bori para assegurar que o ritual seja realizado com sucesso e que todos/as os/as iniciados/as recebam as bênçãos necessárias para sua jornada espiritual. Além disso, Iemanjá é reconhecida como responsável pela sedimentação e formação psicológica dos seres humanos. Ela é considerada a guardiã da psique e da mente, influenciando a estabilidade emocional e a saúde mental de seus devotos.


Seus ensinamentos enfatizam a importância da igualdade, da inclusão e do respeito mútuo entre todos/as os/as seus filhos e suas filhas. Ela é vista como uma força unificadora que promove a harmonia e a coexistência pacífica em toda a criação. Assim, a devoção a Iemanjá inspira seus seguidores a honrar e respeitar a diversidade e a se esforçar para criar um mundo onde todos sejam tratados com amor, empatia e justiça.

Oyá, a divindade que assume a forma de búfalo. Sim, a imagem de Oyá, como uma mulher corajosa e potente, comparada ao búfalo, é uma representação comum nas tradições das religiões afro-brasileiras. Ela é vista como uma figura guerreira, capaz de enfrentar desafios com determinação e força. No entanto, Oyá também é associada à transformação e à liberdade e, é por isso que a metáfora da borboleta livre é tão significativa. Essas representações divinas desafiam as concepções tradicionais de gênero e identidade.


Pai Oxalá, conhecido por usar saia, desafia os estereótipos de vestimentas associadas ao gênero masculino. Considerado uma divindade que incorpora, tanto aspectos masculinos quanto femininos. Ele é reverenciado como o grande pai criador e o princípio da paz, da harmonia e da justiça. Em muitas tradições das religiões afro-brasileiras, Oxalá é representado como uma figura andrógina, simbolizando a união e o equilíbrio entre os opostos.


A própria iniciação no Candomblé é um exemplo poderoso de como as noções de gênero são fluidas e maleáveis dentro dessa religião. Podemos citar, por exemplo, o fato de um homem ser iniciado para Oxum e ser raspado em mulher, sendo ela a dona do útero, ou para Exú, uma divindade associada ao falo, ou, ainda, uma Pombagira manifestada em um Homem, muitas vezes, retratada como uma entidade feminina forte e sensual e associada à energia da sedução, da proteção e da resolução de problemas amorosos e emocionais, são ilustrações que destacam a complexidade e a diversidade das identidades de gênero dentro do Candomblé.


Diante dessas representações divinas e das práticas religiosas, os seguidores do Candomblé são desafiados a reconsiderar e reavaliar seus próprios conceitos em relação à identidade de gênero e à aceitação das pessoas como elas, verdadeiramente, são. Afinal, se divindades tão poderosas e reverenciadas podem transcender as limitações das normas de gênero, por que os humanos não podem fazer o mesmo?


Reverenciar essas divindades e praticar o Candomblé vai além de. Simplesmente, seguir rituais e tradições; envolve, também, incorporar os valores de amor, de empatia e de aceitação em nossas próprias vidas e comunidades. É hora de os seguidores do Candomblé abraçarem a diversidade de gênero e reconhecerem a beleza e a sacralidade de todas as expressões da identidade humana.


Portanto, é fundamental que os seguidores do Candomblé revejam seus conceitos e práticas, promovendo uma cultura de aceitação e respeito para todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero. Somente assim essa religião poderá continuar a ser um grande útero acolhedor para todos os que buscam conexão espiritual e a comunidade.



Bibliografia


Prandi, Reginaldo. Orixás da Metrópole: Cultura Afro-brasileira e Religiões.


Rego, Waldeloir: O Candomblé Bem Explicado


Verger, Pierre. F. Orixás: Os Deuses Vivos da África.


Artigos acadêmicos em revistas especializadas em estudos afro-brasileiros e religião:

Revista Brasileira de Ciências Sociais, Estudos de Religião e "Religião & Sociedade.

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Teses e dissertações acadêmicas disponíveis em bibliotecas digitais e repositórios online de universidades.




Dr. Aurélio de Odé, Babalorixá - AxéNews

Dr. Aurélio de Odé, Babalorixá

Eu sou Paulo Aurélio Carvalho Lopes, nasci em 12 de agosto de 1968, em Simões, Piauí. Sou o primogênito de uma família de seis irmãos, criado por minha mãe solo, Maria do Socorro Carvalho e o apoio de meus avós Dona Maria e Seu José... [+ informações do Dr. Aurélio de Odé, Babalorixá]



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