Por: Babalorixá Márcio de Jagun
20/02/2024 | 18:55
Não se tem, ao certo, o período de início do processo de sincretismo afro-cristão em
terras brasileiras. No século XVIII, as divindades africanas ainda eram desconhecidas do clero português:
As primeiras menções às religiões africanas no Brasil são de 1680, por ocasião das
pesquisas do Santo Ofício da Inquisição, quando “Sebastião Barreto denunciava o
costume que tinham os negros, na Bahia, de matar animais, quando de luto... para
lavar-se no sangue, dizendo que a alma, então, deixava o corpo para subir ao céu”.
Por volta de 1780, em documentos relativos a esse mesmo Santo Ofício, há menções
sobre “pretas da Costa da Mina que faziam bailes às escondidas, com uma preta mestra
e com altar de ídolos, adorando bodes vivos, untando seus corpos com diversos óleos,
sangue de galo e dando a comer bolos de milho depois de diversas bênçãos
supersticiosas...” (RIBEIRO, 1952 apud VERGER, 2002, p. 26).
O sincretismo afrocatólico não tem uma coerência aparente pelos padrões ocidentais.
As figuras entre os santos católicos e os deuses iorubas nem sempre correspondem a uma proporção. Haja vista a relação entre Ṣàngó, descrito como o poderoso e viril soberano de Ọ̀yọ́ e São Jerônimo, um calvo senhor de aparência alquebrada. Contudo, os elementos que os “unem” são a pedra na qual São Jerônimo está sentado (símbolo do poderio de Ṣàngó) e o leão ao lado do santo – símbolo da realeza entre os iorubas.
Como podemos notar, conceitos dogmáticos e espirituais iorubas sobre Deus, sobre os
àwọn òrìṣà e sobre a paz, por exemplo, foram transversalizados por princípios islâmicos e
cristãos há séculos. Com isso, o mito do purismo matricial africano se “esfarela”. Numa cultura ágrafa milenar, como a ioruba, que convive há tanto tempo com as presenças islâmica e cristã em seu território, impondo-se pela política, pela economia e pela religiosidade, torna-se impossível traçar linhas divisórias precisas entre os pensamentos originários que alicerçam a afro-cristão são bem mais antigos e mais profundos do que se supunha. Quando os africanos chegam ao Brasil, com a diáspora forçada, já trazem consigo uma religiosidade africana multifacetada; já desembarcam aqui com sincretismos consolidados. Os sincretismos afro-brasileiros terão matrizes na África, mas também serão outros, serão novos, recontextualizados.
Os sincretismos aqui editados, constituirão novas religiões, ímpares. O Brasil será a
incubadora de uma religiosidade sua, autêntica, plural, fruto dessas trocas. O Candomblé e a Umbanda, por exemplo, enquanto religiões afro-brasileiras, num segundo momento,
protagonizarão uma novel diáspora que se espalha por outros países do Cone Sul e Europa. Só que, agora, já existe uma nova fonte; a matriz já não é a África, mas o Brasil.
(Trecho do livro Filosofia Descolonial do Candomblé Nagô - Márcio de Jagun, Ed. Litteris).
Babalorixá Marcio de Jagun
Márcio de Jagun é escritor e dicionarista especializado em gramática ioruba, autor de sete obras publicadas. Dentre elas, Orí a Cabeça como Divindade (Litteris, 2015).
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