Por: Pai Sid
30/07/2023 | 10:56
A casa que me acolheu fez 25 anos de existência e a construção dessa história passou por várias mãos, camutuês e muximas, alguns que seguem na mesma comunidade, outros que já buscaram outros caminhos, e tantos outros que já atravessaram o Rio Azul. Para que essa casa pudesse estar comemorando esse um quarto de século, um outro tempo precisou ser vivido por quem mantêm essa casa viva, Zara Tempo, a benção!
Quando comecei lá atrás, era comum ouvir pessoas dizendo com tom sóbrio e quase ameaçador: “se você não entra pelo amor, entra pela dor”... Até hoje eu não sei a que dor se referiam pois a Umbanda que eu encontrei não me livrou dos desafios da vida e também não deixa de me trazer alegrias. O que asseguro é que foi a minha melhor decisão!
Quando eu entrei na Umbanda e isso já faz os mesmos 25 anos, por conta da imaturidade e de como dizem, estar ‘caído na folha de Guiné’ eu não tinha dimensão da responsabilidade que havia por trás dessa escolha. Ao entrar em um terreiro precisamos avaliar várias coisas, como a filosofia que aquele terreiro acredita, a história e identidade do terreiro, se aquele lugar é um espaço-território que favorece a diversidade e a potencialidade dos seus membros.
Muitos são os motivos que nos fazem escolher uma religião tradicional, seja por uma busca da ancestralidade, por um problema espiritual, seja a busca de uma nova percepção do nosso contexto social e histórico. É preciso ter em mente ainda, que aquele lugar além de te oferecer algo, espera ainda que você ofereça também. Eu estou pronto a oferecer meu tempo e parte da minha vida para aquela comunidade, eu estou buscando agir de acordo com a filosofia que a minha comunidade acredita?
Por outro lado, não há demérito algum em mudar a rota caso seja necessário, e muitos fazem isso após um período mais ou menos curto dentro de um terreiro. Seja por que só precisava passar uma chuva, ou por perceber que faz parte de outra rama ou raiz ancestral, ou ainda como fazem os que vão apenas tirar algo em proveito próprio, saem depois de roubar o cadinho de saber para alimentar seu próprio ego.
Eu sempre falo sobre a importância de estar e saber o porquê se está em um terreiro, pois é essa certeza que fortalece nossa caminhada apesar das pedras na estrada. Essas palavras aqui não são para falar sobre esse ou aquele orixá, sobre fundamentos ou ritos que são específicos para cada comunidade. Mas ainda que possa soar repetitivo, tem como objetivo falar sobre o que alimenta as relações dentro de qualquer terreiro, falar sobre o que mantém viva a ancestralidade que sustenta a comunidade, é sobre gratidão e fé.
Quando eu entrei na Umbanda eu aprendi com minha mãe de santo mais que rituais e fundamentos, mas coisas que me mantêm vivo e de pé. Aprendi que não importa o tamanho do problema, a última palavra sempre será do Orixá. Aprendi que embora por vezes a gente não perceba, o Santo nos carrega no colo o tempo todo, e que não há melhor lugar para chorar ou contar nossas dores do que o colo de Iemanjá.
Aprendi com a nossa ancestral, Vovó Maria Conga, que os passos de preto velho são curtos e lentos, porém firmes. E que a vida é uma certeza dada por Zambi a todos nós e buscar vive-la em plenitude e com toda a sua força é honrar os sonhos de nossos ancestrais para nós. Aprendi muito com os que hoje estão em Aruanda, mas de lá seguem farol para os que permanecem na manutenção desse sagrado.
Nesse caminho, embora nem sempre no mesmo tom, busco manter a minha voz afinada com a voz da minha mãe de santo, que como em todo terreiro, é a representação viva dessa ancestralidade, da mediação dos entre-mundos, pois é essa voz que vem dela que reverbera a palavra ancestral que me assegura a saúde, a força e a vida plena que só um terreiro pode garantir.
Quando eu entrei na Umbanda eu percebi que a filosofia do meu terreiro era o que fazia meu coração vibrar, as histórias que ouvi dos que eu não pude conhecer me davam força, eu acreditei no projeto-comunidade daquele terreiro, no que a minha mãe de santo acreditava.
Mais uma vez, ainda que pareça repetitivo, deixo aqui esse registro sobre os passos pequenos que dei guiados por quem veio antes de mim, por mortos que eu não conheci mas que estão vivos, na minha mãe de santo, nos meus irmãos e irmãs, em mim. Esse registro é um devolver a fé na comunidade que tem fé em mim, na mãe que exercitou a crença nas possibilidades que nem eu como filho sabia que tinha.
Eu costumo dizer que para quem é do santo, fora do terreiro não há salvação, e não é uma crença fatalista e tampouco uma forma de aprisionar ninguém no terreiro, mas é uma salvação pela nossa ótica, de vencer a morte do apagamento, da meio existência, do não viver...
Caminho devagar, errando e acertando para que um dia eu possa ser também um ancestral vivo através de outros que virão, para quê, ainda que morto, a morte não me encontre, e isso só é possível tendo a oportunidade de viver em comunidade, junto dos nossos, agradecendo o caminho até aqui, e me preparando para os novos desafios, com passos curtos, porém firmes buscando honrar o que me é confiado.
Há um conto de origem bantu que diz que os primeiros homens vieram de um grande pântano, e um dia o senhor deste pântano manda até estes homens um camaleão com a seguinte mensagem: vocês morreram, mas a vida continua’ e o bicho saiu vagarosamente para cumprir a missão. Pouco tempo depois o senhor chama um lagarto e da a ele a missão de ir até os homens com outra mensagem: ‘ vocês morrerão e vão apodrecer embaixo da terra'. O lagarto muito mais ágil, chegou logo cumpriu a missão. Quando finalmente o camaleão chegou com seus passos lentos, os homens o mandaram embora: ‘ já recebemos outra mensagem, chegou tarde demais camaleão! ‘ e dizem que é por isso que os homens morrem...
Pai Sid
Pai Sid Soares é pai pequeno do CENSG - Centro Espírita Nossa Senhora da Guia em Volta Redonda RJ. Co-presidente da Comissão de Terreiros Mojuba, no Sul Fluminense que realiza um trabalho de fomento das políticas públicas para o povo de santo. [+ informações de Pai Sid]
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