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Ventres-política: mulheres na organização social da vida

Por: Yakekere Katiuscia de Yemanjá


Foto: Reprodução

27/05/2024 | 16:53


Recentemente, estive imersa em discussões muito acentuadas sobre as múltiplas figuras da mulher na sociedade, desde as interrogações sobre o modelo branco, cristianizado e (aquele modelo só de mulher e homem: Adão e Eva) até minha participação em duas atividades parlamentares nas câmaras municipal e estadual.



Tanto na Infâncias de Axé, da vereadora Thaís Ferreira, quanto na audiência pública chamada pela deputada estadual Renata Souza: mulheres e crise climática, vi, ouvi e presenciei a imensidão de mulheres no fronte de luta, na cobrança de políticas públicas, nas várias esferas de ações emergenciais de socorro a populações vulnerabilizadas. Mulheres na linha de frente pela vida.


Como meu cotidiano atual é totalmente significado pela negritude, e minha vivência é totalmente dentro das sabedorias de terreiro, logicamente meu olhar e minhas condutas são formados pela perspectiva do conhecimento dessas comunidades e, por aqui, a mulher sempre foi a responsável pela organização social, pela educação e pela administração do saber.


Papel muito diferente de designar às figuras femininas o papel doméstico de cuidado, presas em seus domicílios cumprindo uma conduta passiva mediante as situações da vida em sociedade. Lembrando que cuidar é uma tarefa de quem vive e é feita em coletivo; logo, é preciso toda uma comunidade para cuidar! Não apenas arremessar o peso das tarefas nas costas de uma pessoa.


A minha tradição negra e de axé me ensinou que mulheres, como Oyá mesmo nos mostra, saem para guerrear e não se prendem a uma única situação. Basta lembrarmos que o início da resistência preta feminina neste chão Brasil escravagista foi feita por meio de grandes tabuleiros de quitutes deliciosos, feitiços de cura e independência em forma de alimento, tendo a comida de Oyá - akara un jé - como a principal forma de ganho e liberdade de muitas mulheres, estratégia que persiste até hoje.


É essa mesma tradição que vai ensinar que carregamos os ventres do mundo. Em nossos corpos embalamos seja transformação, seja também a condução do axé. E aí temos uma outra questão polêmica sobre sexualidade e identidade muito fácil de ser resolvida, desde que tenhamos dignidade para nos despir dos anos de opressão de gênero e formatação binária que nos impôs o Ocidente sobre as vidas.


Mulheres aqui, em minhas palavras, serão todas que com ou sem útero carregam a potência feminina no seu existir. Com útero e toda sua funcionalidade, são portal da vida, capazes de transformar, produzir axé. Com seu portal já fechado ou sem a presença dele (sem o útero), são a condução, as yalodês, essas mulheres que vão organizar a sociedade na perspectiva do transporte, na sabença da interlocução em situações que nosso sangue derramado nos trariam má sorte.


Mas, de todas as maneiras, continuamos ventres carregados de Exu e de nossa potência-mãe da sociedade. Me pergunto sinceramente por que ainda não nos demos conta com profundidade que nossos bancos legislativos estão tão esvaziados de nós, e efetivamente não nos jogamos em revolução acentuada.


Mas aí eu me acalmo dessa fúria, pois lembro que a nós não cabe o “tudo é pra ontem”, pois ainda lutamos pela dignidade mais básica e foi ontem que eu ainda estava de olhos vendados. Essa é a lógica do racismo: vendar; e por isso é preciso estratégia. Eu olho para os movimentos de axé e vejo mulheres à frente, numa guerra constante para serem ouvidas e respeitadas, mas firmes, sempre firmes.


Eu olho para os movimentos agroecológicos, estão elas lá novamente, transformando a terra, conduzindo saberes! Mãos negras em sua maioria, mesmo as que estão distante da ancestralidade, guardam dentro de si a memória que as ensinaram a esquecer.


Eu olho para política partidária, que nós tanto não queremos participar, e vejo as sementes de Marielles brotando firmes, empretecendo, periferizando aquele espaço duro, excludente, tantas vezes cruel com nosso povo. E aí respiro um pouco de esperança e desejo que a gente se multiplique, porque a política carece de afeto, urgência em humanizar nossa pele preta, macumbeira; nossa juventude com todas as suas identidades. Nossa gente bi, gay, sapatão, trans! Nossas crianças que nasceram com suas especificidades, as que chamam deficientes, mas que afinal são outras formas de existir.


Quem não nos vê, não pode ser por nós! Essa conta é mais simples do que se pensa. Quando uma mulher se atira nas ruas para acolher a população, se atira nos desastres climáticos, vai lutar pela casa que desabou, vai lutar pelo filho que o Estado tirou… ela está enxergando! Afinal, ela é o portal, ela é a condução. Somos nós que fazemos a organização social acontecer.


Minha questão é por que isso ainda é tão estranho entre nós, mas a resposta vem: num mundo que secularmente pôs homens (brancos) no poder, a gente continua sem se ver.


Na minha vivência, só as mulheres negras são capazes de olhar os homens pretos e dizer a eles “olha aí, meu Guri”, mas não é para ver a cara dele estampada no jornal não, é para dizer que ele pode amar e ser amado, que ele tem direito a ter humanidade garantida, que ele não é o monstro que disseram. Que ele pode também ocupar lugar na vida, que as mãos deles também são semeadoras de um mundo potente.


Eu desejo que os ventres-política possam se saber! Há quem diga que dias das mulheres virão, eu digo que eles não só já vieram, como são quem fazem o mundo girar! Espero pelo tempo que a gente vai fazer com que nós mesmas entendamos o tamanho de nossas vidas.


Salve a potência que mora em nós!


(Dedico estas palavras com muito carinho a todas as agbas que constroem a minha consciência feminina, às parlamentares que lutam incansavelmente pelos nossos direitos, ao coletivo Padilhas que significa comigo este dizer e aos homens da minha comunidade que todo tempo me fazem entender que homens pretos também choram).



Katiuscia de Yemanjá - AxéNews

Yakekere Katiuscia de Yemanjá

IYÁ Katiuscia de Yemanjá, mulher de terreiro, mãe, Yakekere do Rei Xangô, da família Òbá Labi, corpo-memória cabocla-nordestina ; forjada pela força e o afeto das muitas mulheres. “De anel no dedo e aos pés de Xangô”, mestre em linguagens pela UERJ, professora da educação básica pública e periférica, pesquisadora e defensora dos saberes ancestrais na diáspora. [+ informações de Yakekere Katiuscia de Yemanjá]



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