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Vova Wizana!

Por: Pai Sid


Foto: Reprodução

2/06/2024 | 13:43


Este é o mês de Exú, do orixá do movimento, da vida, mas também da comunicação.


Pensar sobre Aluvaiá o Senhor da Comunicação e a presença deste Nkisi em nossa vida me traz exatamente para esse tempo/momento em que Ele possibilita que meu pensamento e minhas palavras possam ser lidas por você. Me faz pensar não apenas na infinidade de encruzilhadas, nos encontros e desencontros bem amarrados pelo dono dos caminhos, mas na particular beleza da comunicação.



O muntú é a pessoa que encerra em si a mente, a cultura, mas principalmente a palavra que é a ponte ou caminho que transmite o ntú, a força vital entre as pessoas, os conhecimentos por meio da oralidade, dos provérbios. Os caminhos e suas oportunidades não têm direção, são apenas caminhos, eu me permito aqui pelas mãos de Nzila voltar ao passado e enxergar sua presença em meu caminho sem eu saber dEle.


Sou o mais velho de quatro irmãos e um deles com surdez que obrigou minha mãe, meu pai e a todos em casa a restabelecer a possibilidade da linguagem, do diálogo e compreensão entre uma mulher e seu bebê, entre irmãos em uma família periférica. Num tempo (lá se vão quarenta anos) onde os aparelhos auditivos eram raros e caros e a inclusão ainda era algo inexistente, os gestos criados no ambiente familiar, que em nada lembram a Língua Brasileira de Sinais, possibilitaram signos para falar de coisas simples, do dia a dia como comer, se vestir, mas também nos deu a oportunidade de entre nós, falar de afeto. A língua de todos nós ficava na ponta dos dedos. Entendemos e aprendemos ali que o silêncio também era palavra, ou na importância delas ou em algumas vezes, de não mencioná-las, e eu ouvia a expressão “lata vazia” ser substituída por escassez de víveres. O que não era pronunciado, não existia!


Os termos "afasia" e "séria dificuldade cognitiva" que ouvimos de diversos "especialistas" foram superados pela oportunidade da comunicação, pela compreensão e entendimento que só é possível quando também se possibilita a troca, o vai e vem do que cada um pode oferecer de si para o outro, quando além da língua, o coração também é posto em cada gesto, na palma da mão.


A capacidade da fala, do entendimento e do diálogo é o que nos possibilita participar de grupos, comunidades, nos dá cidadania, nos define como desse ou daquele território a partir do discurso que proferimos, da expressão de nossas emoções. É a fala que nos oportuniza o encantamento, como Katendê abrindo com a força da palavra, o que há de mais poderoso em cada folha, como o Ngoma, o primeiro tambor, falando para os minkisi.


Ainda que o acesso para nossa casa fosse difícil, construímos nós mesmos a capacidade de diálogo, de convívio e como em toda família, é essa comunicação estreita dentro das casas que nos formam. Hoje, já distante daquele tempo e realidade, enxergo pensativo o grande desafio que há para todos nós em relação a comunicação.


Engolimos o que pensamos e evitamos o diálogo quando estamos diante de quem poderia nos ouvir, para depois expelir o que nos incomoda de qualquer maneira e em qualquer lugar. Se ouvimos gritos, queremos gritar mais alto, se escutamos algo sobre um conhecido, passamos adiante de forma despretensiosa para maquiar a fofoca. E vamos construindo relações em cima de meias palavras, de muxoxos, dos julgamentos que fazemos de terceiros nas redes sociais.


A forma como usamos nossa palavra, nossos gestos e atualmente as mídias, diz muito do que queremos falar ao mundo. As fake news ou as mentiras espalhadas tomaram essa proporção agora, mas já estavam por aqui há muito tempo, antes de nossas mãos ficarem ocupadas com o celular. Há um provérbio da tradição Kongo que diz muito sobre o momento atual: “Os mensageiros são raros, os boateiros abundam”.


As estradas ficaram mais curtas, oportunizando encontros e reencontros, mas quando pedimos a Nzila que nos dê segurança num bom caminho saímos tão apressados que nos esquecemos de pedir a boa fala, o bom uso dela, a compreensão do outro, a escuta. Queremos o mercado, mas não saímos preparados para a troca, que começa na palavra, no diálogo. Começa por dizer com respeito o que nos incomoda, mas estar pronto para ouvir ainda o que não estamos realizando bem.


O cuidar de falar ou escrever o bem é garantir que na próxima encruza eu encontre esse Bem no meu caminho e aqui cabe outra sabedoria ancestral que reza: "O que pensas pertence-te, mas o que dizes pertence ao público" e depois de lançado boca a fora, alcança nossos vivos, mas também os nossos mortos.


O "Vova Wizana" é um dos provérbios mais conhecidos dos Bakongos, e usado também nos chamados Kinzonzi (aqui poderíamos chamar de maneira rasa de debates), que eram espaços criados pelas comunidades para mediação, diálogo e solução de conflitos. O Kinzonzi é visto muitas vezes como uma reunião de família, mas pode ter a relevância de um tribunal tradicional, uma assembleia para falar do que é bom ou ruim para a comunidade, o que há de errado, as coisas boas, onde o problema de cada pessoa é também da comunidade, e é realizado em situações de alegria ou tristeza.


Buscando essa referência nossa na ancestralidade, verificamos que numa comunidade a palavra e seu uso por meio do diálogo, são vitais e sagrados, devendo ser passados de Muntú para Muntú (os vivos e os mortos) e de Bantú para Zambi (toda a comunidade e o divino) estabelecendo um ciclo ou conexão mútua que permanece ativa quando entendemos que um muntú é um ser humano consciente de sua capacidade de construir relações baseadas no respeito a outro muntú.


Como estamos realizando nossos diálogos em casa, com nossas famílias, com nossa comunidade? Qual o valor que estamos dando a palavra e qual é a magia que empregamos nela quando damos vida ao que pensamos?


Quando falo de alguém eu falo de um muntú, mas também falo para alguém, e é essa ponte ou encruzilhada que construímos até o pensamento ou o coração do outro é que podem nos encher ou nos esvaziar de ngunzo! A palavra é presente em tudo numa comunidade e deve ser a portadora de tudo o que alguém que quer pertencer a uma comunidade faz, elo de ligação entre o eu e nós, mantém a nossa própria história e a de nossa Kanda, preservando saberes. É a palavra que nos faz existir por meio do nome que nos é dado, pois é nela que está presente o Sopro de Zambi.


Vova Wizana, Conversando é que a gente se entende.



Pai Sid - AxéNews

Pai Sid

Pai Sid Soares é pai pequeno do CENSG - Centro Espírita Nossa Senhora da Guia em Volta Redonda RJ. Co-presidente da Comissão de Terreiros Mojuba, no Sul Fluminense que realiza um trabalho de fomento das políticas públicas para o povo de santo. [+ informações de Pai Sid]



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