Por: Yakekere Katiuscia de Yemanjá
15/03/2024 | 09:38
Não sei para muitos dos irmãos e irmãs de axé que estarão lendo este artigo, mas para mim, o rito das águas é o que me gera maior reflexão sobre nosso caminhar.
Nós de comunidades tradicionais negras temos uma forma de aprendizado um tanto diferente das práticas educativas do ocidente. A gente aprende pela vivência, pela rememoração de práticas ancestrais a partir de uma construção totalmente coletivizada, ou seja, não fragmentamos os conhecimentos priorizando atender a uma relação de mercado financeiro e de apagamento de saberes.
Nosso aprender inclusive, quando pensamos nas diásporas negras, ele vai acolher outros saberes de modo a não deslegitimar seu “protótipo” original, mas dar em nossas vivências uma pitadinha de sabor, preto, é claro.
É por isso que a vivência é tão fundamental para o fortalecimento das identidades das comunidades de terreiro, pois é no chão que podemos construir resistências possíveis, oriundos do sentir, da rememoração das histórias de nossos e nossas antepassades. E, pasmem, cada “mito” rememorado em rito, durante nossas vivências, mesmo que o mesmo, não é o mesmo.
As águas de Oxalá, num resumo talvez injusto, mas o possível para este ensaio, é a rememoração do período em que Oxalá passou injustamente preso nos calabouços do grande reino de Xangô. Oxalá, dentro das muitas tradições negras, é corpo-divindade ancestral que representa o grande orixá fun fun, um dos que organizam o processo de criação, por isso é o pai de todes, logo, sendo visto como pai de Xangô, inclusive.
O trajeto que leva Oxalá a prisão parte de sua desobediência após consultar Òrúnmìlá ifá, levando-o a diversas situações conflituosas ao longo do caminho, até sua injusta prisão como ladrão do Cavalo de Xangô, passando 21 anos preso sem dizer uma só palavra, umas das poucas recomendações de ifá que ele obedecera. Somente após Xangô ter de ir consultar Ifa por seu reino estar sendo devastado pela miséria que se descobriu que o ancião preso nos porões era, na verdade, seu pai. E aí começa toda a trajetória para lavar Oxalá e retorna-lhe a dignidade.
E por que eu digo que esse período das águas é tão reflexivo - ou deveria ser - para nós aprendizes do viver em sociedade, pois havemos de observar que remontar esta história não pode ser uma ação automática, nem tampouco romantizada, quiçá exotizada, como lamentavelmente vemos tantas vezes.
Nós que estamos ali precisamos entender que esta é uma história sobre cumprimento de destino, sobre interdições, sobre aceitar momentos, reconhecer que nossas posições não nos fazem superiores ao nosso próprio caminho, nem tampouco aos dos demais. É uma lição sobre confiança, a quem você entrega sua confiança? Xangô entregou a seus guardiões, e eles prenderam seu próprio pai. Terá sido inocentemente?
É além de tudo sobre ouvir! Obedecer, reconhecendo que não dominamos o tempo, como disse em outro artigo, fomos ensinados por aqui que o tempo não se rende. O desobedecer gera consequências que não vamos mesmo estar preparades para enfrentar, e aí precisamos ter coragem para assumir e seguir.
Quando falo em desobediência não estou dizendo que devemos nos render a escravidão de ter de seguir valores estipulados para atender a uns em detrimento da dignidade de outros, nem tampouco sobre uma relação de submissão e violência das nossas identidades.
Falo em não desobedecemos a nós mesmos, afinal, o caminho é nosso, a interdição é singular, o aconselhamento também. Então estamos mais dizendo sobre autoconhecimento e autorrespeito do que qualquer outra coisa.
Gosto também de pensar que apesar de haver uma sentença, essa vivência que Oxalá nos dá como aprendizado não fala sobre proibir-coibir, há uma proibição, mas a você e somente você, não quer segui-la? saiba que seus caminhos estão suscetíveis a atravessamentos, porque indubitavelmente sua desobediência entra no caminho do outro, colide, você inclusive pode assumir uma responsabilidade que nunca foi sua. E gosto mais, porque esse rito me ensina a assumir consequências, a aprender iÌwà Pèlè!
Acima de tudo, me mostra o quanto Exu é a ética nas nossas vidas, pois apesar de filho de Oxalá, ele o cobrou em toda sua caminhada, assumindo depois o peso de ter feito o que não podia não fazer, Exu não fugiu a sua natureza existencial. Me mostra que não fugimos as sentenças, pois Xangô também a recebeu por ter prendido seu pai injustamente, mais que prender, não reinar como deveria, afinal, entregou a justiça nas mãos de quem não podia fazê-la.
São dias pesados e leves para nós. Pesados porque, assim como Oxalá, são 21 dias vestindo nosso branco tão punido pela sociedade branco-racista brasileira, que se arroga o direito de decidir com olhares e falas se nossa presença é digna a seus olhos. Leves, porque Oxalá, como seu silêncio ensurdecedor, como as nuvens do céu, nos invade em dengo, em afago, em cura!
São 21 dias da prisão até a grande festa em que o guerreiro GUIÃ com sua espada e seu pilão mostra a luta do nosso povo, remontando a mesa farta de oferendas em nome da liberdade.
São águas que nos lavam, tal qual um dia nosso grande pai foi lavado por nossos antepassados. O que rememoramos são nossas próprias forma de lutar pela vida.
Ebò Baba ebo unjéaua
Orixá Xala borio ebò
Epa epa!
(Dedico estas palavras a minha navalha, a minha grande Yalorixá Iyá Baba SOUMIM, Acidália dos Santos, mulher que carrega o pilão e a espada, e nunca deixa seus filhos sós, sua benção, mãe)
Este texto parte de um recorte dos aprendizados da tradição que me significa, e deste rito tão importante para nossa cultura. São impressões subjetivas dos modos de aprender no território Òbá Labi. É importante dizer que no Brasil, temos muitas tradições que se referem às vivências da diáspora negra, logo suas múltiplas interpretações ( leiam interpretação como significação, não como achismo).
Yakekere Katiuscia de Yemanjá
IYÁ Katiuscia de Yemanjá, mulher de terreiro, mãe, Yakekere do Rei Xangô, da família Òbá Labi, corpo-memória cabocla-nordestina ; forjada pela força e o afeto das muitas mulheres. “De anel no dedo e aos pés de Xangô”, mestre em linguagens pela UERJ, professora da educação básica pública e periférica, pesquisadora e defensora dos saberes ancestrais na diáspora. [+ informações de Yakekere Katiuscia de Yemanjá]
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