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É preciso Repactuar!

Por: Yakekere Katiuscia de Yemanjá

21/01/2024 | 12:25


Dentro da tradição da nossa comunidade, ao se encerrar um ciclo deste tempo cronológico que o ocidente criou, nós recebemos por meio do eridilongo (jogo de búzios) os caminhos para o próximo ano que se iniciará. Veja que eu falei caminhos.




Caminhos não são sentenças e tampouco imposições a todes, como sujeitos singulares dentro de um coletivo, e sujeitos de vontade, sempre somos direcionados a caminhos, pois não somos iguais e tampouco agimos uniformemente.


Contudo, foi enfático e incisivo dentro desses muitos caminhos, a necessidade de REPACTUAR! Apesar das palavras do Eridilongo serem uma direção para a nossa Egbé, a urgência na repactuação saiu como uma iminência para os rumos da existência de nós, seres humanos.


Eu me pus a refletir insistentemente, e acreditei que precisava nesse primeiro artigo do ano dividir aqui com vocês essas inquietações: O que seria repactuação? O que devemos repactuar? Por que precisamos fazê-la para garantir nosso bem-viver? Isso diz mesmo respeito a todes nós?


Logicamente, como mulher de terreiro, sabedora de que, na nossa concepção de vida, viemos ao ayê com “pactos”, nossos compromissos e vontades, assumidas na Egbé Orun, fiquei pensando na complexidade da palavra repactuar. O que eu deveria repactuar? Isso mudaria os compromissos de meu destino?


Certamente, a compreensão das palavras ancestrais de repactuação com a vida para nossa caminhada não tem a ver com descumprir nosso destino, mas voltar para ele. Repactuar então seria retornar, e a insistência do eco criado por esta palavra, não é menos que parar por instantes e perceber que vida é essa que temos trilhado enquanto sociedade.


Eu me lembro, que todo o fim de ano, era comum a gente ver circulando uma poesia de um escritor canônico, homem branco da literatura legitimada, se chamava Receita de Ano Novo. Nessas palavras, Drummond dizia que era preciso fazer o ano ser novo e não esperar que ele fosse sozinho.


Logicamente, Drummond, o Carlos de Andrade, também falava de responsabilidade sobre seu destino e logo o destino da sociedade. Acho que apenas não era considerado que nem todos tinham os mesmos requisitos para fazer essa caminhada nova, às vezes achava o texto bonito, hoje já acho um tantão meritocrático e com aquela positividade tóxica, difícil de achar quando se é parte excluída na sociedade.


Mas, uma coisa havemos de concordar, apesar de não haver uma receita, precisamos construir não só um ano novo, mas um “mundo” novo. E definitivamente, isso passa pelas nossas vidas mais singulares rumo a nossa composição coletiva.


Repactuar me parece preencher melhor as lacunas das diferenças, pois como diz o mestre Nego Bispo temos “começo, meio e começo!”, e nessa nossa filosofia afrovivida, nós fazemos de ciclos que não vão só pra frente, se é para frente que se anda, é olhando para trás que a gente se encontra. Nossa vida é em roda, onde não tem fim, somente o reinício!


Mas se a gente foi ensinado a esquecer de olhar para trás e convencido que a vida é uma estrada reta com um horizonte que não se alcança com olhos, então quando é que chegamos? E aí está mais um recado trazido pelo Eridilongo: O tempo não se rende! O tempo não se rende! Sim, o tempo não se rende!


Em meio ao início do ano, tragédias climáticas devastaram inúmeras de famílias, um caos se instaurou em nossa cidade. As cenas quando não vistas a olho nu, passam em notícias instantâneas, na velocidade do algoritmo, atormentando nossas e nossos orís incompreendidos, mas isso é todo início de ano, porque será que nos surpreendemos, o que é, então, que anestesia nossas lembranças?


Vivemos um terror climático com ondas de calor insuportáveis, começamos a falar em proteger a natureza, mas não saímos da lógica consumo-lucro. Falamos em fome, mas não paramos de desejar crescer para ser rico, rico de quê? No tal ontem perdemos mais de meio milhão de vidas só nosso país, fruto da devastadora Covid, e você se vacinou até que dose?


O servir e proteger continua matando nossas descendências. Nossos jovens quando não morrem de tiro, são mortos pela falta de esperança. A escravidão contemporânea, corro risco em dizer, se acentua mais cruelmente do que quando a colônia tinha assento no poder.


As pessoas se sentem autorizadas pela liberdade de expressão, enriquecidas pela velocidade da tecnologia digital, a espalharem suas crueldades em forma de opinião como se a “verdade e a vida” estivessem nas mãos delas, e talvez esteja mesmo, pelo menos em ideal.


Não sentimos constrangimento em cometer vários crimes contra os direitos humanos de forma aberta, escancarada e desavergonhada. Racismo, homofobia, misoginia, capacitismo… virou parque de diversão, e ainda dá lucro, palco e seguidores. Tudo pode ser dito, porque estamos na era do direito de fala, a questão é quem está sendo não só calado, mas adoecido por tantas palavras-munição.


Mas, o tempo… ah, o tempo não se rende! O destino se cumpre, seja ao modo que deveríamos cumprir, seja ao modo que estamos fazendo. O tempo no nosso entender não devora, ele apenas não se rende. Se nós estamos devorando as lembranças e esquecendo de olhar para trás e buscar modos de uma vida melhor em nome de uma civilidade ocidentocentrica que nitidamente não deu certo, precisamos aceitar que o tempo não se rende.


“É preciso aprender a voltar para casa!”, diria o mestre Bispo! É preciso repactuar, nos ensina a ancestralidade para esse próximo ciclo.


Axé


(Créditos: Texto realizado com base no jogo de eridilongo do ano realizado pelo Babalorixá Thiago de Xangô para sua comunidade, o Terreiro Òbá Labí).





Katiuscia de Yemanjá - AxéNews

Yakekere Katiuscia de Yemanjá

IYÁ Katiuscia de Yemanjá, mulher de terreiro, mãe, Yakekere do Rei Xangô, da família Òbá Labi, corpo-memória cabocla-nordestina ; forjada pela força e o afeto das muitas mulheres. “De anel no dedo e aos pés de Xangô”, mestre em linguagens pela UERJ, professora da educação básica pública e periférica, pesquisadora e defensora dos saberes ancestrais na diáspora. [+ informações de Yakekere Katiuscia de Yemanjá]



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